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'Duas Vidas' compara aborto com holocausto e ignora saúde da mulher

Documentário da Brasil Paralelo defende que interrupção da gravidez é fruto da desumanização da sociedade

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São Paulo

Duas Vidas

Ao comparar o aborto com genocídios e holocaustos, a narradora do documentário "Duas Vidas" admite que a analogia pode soar exagerada. "Mas, certamente, não pareceria para as milhões de vidas abortadas nos Estados Unidos desde 1973."

O tom de denúncia e desprezo por quem é favorável à descriminalização do aborto acompanha o longa-metragem, produzido pela conservadora Brasil Paralelo, que diminui frases como "meu corpo minhas regras" e o argumento de que aborto é uma questão de saúde pública.

A produção defende que o debate envolto da descriminalização do aborto é um reflexo da desumanização da nossa sociedade e é fomentado por ideologia política.

Cena do documentário 'Duas Vidas', da Brasil Paralelo
Cena do documentário sobre aborto 'Duas Vidas', da Brasil Paralelo - Reprodução/Site Brasil Paralelo

Também retoma os principais argumentos de grupos anti-aborto, como o fato de que o julgamento da descriminalização do aborto no STF (Supremo Tribunal Federal) estaria apropriando-se das competências do Legislativo —o julgamento da descriminalização do procedimento até a 12ª semana de gestação foi aberto em setembro deste ano.

Além de se posicionar contra a descriminalização do aborto e não ouvir nenhum especialista ou mulher favoráveis, o longa também incentiva que há outras saídas para além da interrupção da gravidez mesmo diante de cenários autorizados pela legislação brasileira.

Entre as soluções propostas, está a possibilidade da entrega voluntária, quando a mãe entrega seu filho para adoção, sem levar em conta as consequências que aquela gravidez indesejada pode trazer para a mulher.

Ou, ainda, mostra que ser mãe é um ato de amor incondicional e apresenta a história da italiana Chiara Corbella Petrillo, que perdeu os dois primeiros filhos poucos dias após o nascimento, em decorrência de má-formação. E, durante a terceira gestação, descobriu um câncer, mas decidiu levar adiante a gravidez e morreu pouco depois do nascimento do filho.

Um dos principais depoimentos que aparece no longa é de Zezé Luz, cantora e ativista contra aborto, que relata sobre o triste episódio em que foi sequestrada aos 18 anos, estuprada e engravidou de um dos abusadores.

Ela interrompeu a gravidez, porém se arrependeu e hoje se tornou uma das principais vozes anti-aborto do país e alega que já salvou 500 bebês do aborto.

Durante pouco mais de uma hora, o documentário tenta invalidar os principais argumentos daqueles que defendem o aborto e por reiteradas vezes defende que o feto deve ser considerado vida humana desde a sua concepção. Por isso, o aborto deve ser considerado como "a interrupção de uma vida inocente".

O longa também defende que a vida não pode ser contabilizada apenas a partir das 12 semanas, limite do período gestacional definido no julgamento que corre no STF em relação à descriminalização da interrupção da gravidez.

Entre os argumentos estão frases de efeito, como "o feto é vida humana desde a concepção e o aborto é a interrupção de uma vida humana inocente".

A produção também se baseia em uma pesquisa da Northwestern Medicine divulgada na Scientific Reports, de 2016, que demonstra que após a fecundação acontece uma explosão de luz —segundo a interpretação do longa, essa explosão química sinalizaria "o início da vida".

A explicação da pesquisa, porém, é puramente química. Nela, é descrito que, quando observado com microscópio, o espermatozóide ao fecundar em um óvulo libera milhares de milhões de átomos de zinco, que emitem luz.

Em relação ao argumento de que a descriminalização do aborto seria uma questão de saúde pública, o documentário alega que, em 2010, 79 mães morreram em decorrência do procedimento e que o número caiu para 51 mortes em 2021 —os dados foram obtidos pelo Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde.

No longa, os números são considerados baixos e, por isso, cairia por terra a justificativa de que o aborto se trata de uma questão de saúde pública.

A produção ignora estudos da área, como a Pesquisa Nacional de Aborto de 2021, que mostra que uma em cada sete mulheres com menos de 40 anos já interrompeu pelo menos uma gravidez.

Também não mostra que, para além de mortes maternas, há diversas internações por complicações da gravidez. Entre 2008 a 2017, foram registradas 2,1 milhões de internações no país para tratar complicações de abortos, gerando um gasto de R$ 486 milhões para o SUS (Sistema Único de Saúde). Além disso, entre 2000 a 2016, ao menos 4.455 pacientes morreram.

O documentário também não aborda questões raciais e sociais que envolvem o aborto no Brasil. De acordo com pesquisas, mulheres com melhores condições financeiras procuram clínicas clandestinas, enquanto gestantes pobres se submetem a tratamentos desumanos.

De acordo com uma pesquisa publicada recentemente na revista Ciência & Saúde Coletiva mostra que a probabilidade de se fazer um aborto é 46% maior para mulheres negras.

O filme parte do princípio que a discussão do aborto se trata de um debate de quando "eu posso matar quem me desagrada" e também não cita a situação dos Estados Unidos. Após a Suprema Corte derrubar o direito ao procedimento em 2022 e deixar as decisões ao cargo do estado, a mortalidade materna cresceu.

Ao evitar trazer dados completos sobre aborto e comparar aborto com genocídio, o documentário prega para convertido e esvazia o debate de um procedimento que já faz parte da realidade de milhares de mulheres. Também mostra que o grupo contra a interrupção da gravidez deve se unir, sem levar em consideração a realidade das mulheres que optam pelo procedimento.

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