Como a arte sacra vem desaparecendo das igrejas de Minas Gerais há décadas

Autoridades dizem não ser possível levantar dados sobre as ocorrências e padre cobra fiscalização de colecionadores

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Belo Horizonte

Dezembro de 1949. Uma imagem de são José, conhecida como "São José de Botas", é dada como desaparecida da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Sabará, em Sabará, na Grande Belo Horizonte.

Maio de 1984. Um crucifixo é furtado do Santuário Nossa Senhora da Conceição em Conceição da Barra de Minas, na Zona da Mata mineira.

Novembro de 2023. Um rosário com partes de ouro é furtado do Museu de Arte Sacra da Basílica de Nossa Senhora do Pilar em Ouro Preto, região central de Minas Gerais.

Em nenhum dos três casos há informações sobre o paradeiro das peças.

Sino de aproximadamente cem quilos furtado em agosto de 2023 da Igreja de Nossa Senhora da Conceição em Itamonte (MG) - Sondar/MPMG

Seja em igrejas de cidades turísticas de Minas Gerais, como Ouro Preto, Mariana e Sabará, de forte tradição religiosa, ou em templos de outros municípios menos conhecidos, o desaparecimento de artigos religiosos e imagens sacras persiste ao longo do tempo no estado.

A maioria dos desaparecimentos é por furto, que impressionam sob vários aspectos, além da frequência. Também em 2023, em julho, um sino de bronze de cem quilos e 60 centímetros de altura foi furtado da Igreja de Nossa Senhora da Conceição em Itamonte, outro município da Zona da Mata.

O sino funcionava no campanário da igreja. Tinha o brasão do Brasil imperial e teria sido doado à igreja por volta de 1880 pela princesa Isabel durante viagem rumo ao Circuito das Águas, segundo informações do site Sondar, criado pelo Ministério Público de Minas Gerais em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais.

Igreja de Nossa Senhora da Conceição em Conceição da Barra de Minas (MG), uma das que mais sofreram furtos de peças sacras no estado. - Secretaria de Estado de Turismo de Minas Gerais

O objetivo é tentar localizar peças sacras desaparecidas. A população pode usar o sistema para repassar informações que possam ajudar na recuperação dos objetos.

O site mostra fotos das peças que sumiram. Minas Gerais tem cerca de 2.500 bens culturais desaparecidos cadastrados no sistema. Do total, mil são peças sacras pertencentes a igrejas. Outros mil são documentos e 500 objetos arqueológicos. "Todos retirados clandestinamente de seus locais de origem", afirma o promotor Marcelo Mafra, de Defesa do Patrimônio Cultural de Minas Gerais.

Imagem de Nossa Senhora das Mercês, furtada em 1994 da Igreja de Nossa Senhora da Rosário em Conceição da Barra de Minas (MG). - Valentim Paes Correa/Sondar/MPMG

A reportagem entrou em contato com a Polícia Civil de Minas Gerais para informações sobre investigações em relação ao desaparecimento de peças e imagens sacras.

A resposta foi técnica. "A Polícia Civil de Minas Gerais informa que não é possível realizar o levantamento dos dados solicitados, por não haver no Reds [boletim de ocorrência] um campo parametrizado que permita filtrar a informação", diz uma nota da instituição, que também não tem um porta-voz disponível para entrevistas. "Quanto ao pedido de entrevista, no momento não foi possível viabilizar uma fonte."

Também foi feito contato com a Polícia Militar, que afirmou em nota realizar diversas operações para atendimento às demandas de segurança pública no estado.

A Secretaria de Estado de Segurança Pública deu uma resposta semelhante à dada pela Polícia Civil em relação ao levantamento de dados.

Duas igrejas de Conceição da Barra de Minas, na Zona da Mata, estão entre as que têm mais peças e imagens desaparecidas. O Santuário de Nossa Senhora da Conceição tem seis desaparecimentos —um crucifixo, pinturas em tela de são Jerônimo, são Gregório, santo Ambrósio e santo Agostinho e uma pintura em forro da nave atribuída a Joaquim José da Natividade.

Todos foram furtados. A pintura em forro, em 1980. O crucifixo, em maio de 1984. As pinturas em telas, em dezembro de 1984. Ao que parece dentro de uma mesma ação de invasores.

Outra igreja da cidade, a de Nossa Senhora do Rosário, tem quatro imagens desaparecidas. Uma de Nossa Senhora das Mercês, uma de Nossa Senhora do Parto, uma de são Domingos e uma coroa de prata de Nossa Senhora dos Remédios. Todas também registradas como furtadas.

As datas dos desaparecimentos coincidem, em parte, com os ocorridos na outra igreja da cidade também atacada.

As imagens de são Domingos e a coroa de prata de Nossa Senhora dos Remédios sumiram em maio de 1984. Já as imagens de Nossa Senhora das Mercês e Nossa Senhora do Parto foram dadas como desaparecidas em dezembro de 1994 e maio do mesmo ano.

Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Sabará, na cidade de mesmo nome, na Grande Belo Horizonte, onde uma imagem de são José, conhecida como 'São José de Botas', desapareceu em 1949 e até hoje não foi localizada - Eduardo Verderame

O padre Marcelo Moreira Santiago, da Paróquia Sagrado Coração de Jesus, em Mariana, acredita ser necessária a aplicação de recursos de impostos na segurança das igrejas. Ele disse ter havido investimentos, pelos templos, em alarmes e câmeras de segurança, mas que ainda há facilidade para atuação de criminosos.

O padre defende ainda atenção a quem pode estar atuando como receptador de obras furtadas. "É preciso fiscalizar melhor o acervo dos colecionadores deste país. Acompanhar mais de perto as lojas que vendem artigos religiosos antigos e leilões", afirma.

O padre Paulo Barbosa, das igrejas Matriz de Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora do Rosário, em Congonhas, diz que falta um envolvimento maior por parte das autoridades no sentido de coibir os ataques às igrejas. "Ainda se pode fazer mais pela segurança do patrimônio sacro-cultural de Minas Gerais", ele diz.

O cônego Nedson Pereira de Assis, diretor da Comissão Arquidiocesana de Arte Sacra da Arquidiocese de Mariana, que reúne paróquias também de Ouro Preto e Congonhas, por exemplo, afirma que os padres são sempre alertados em relação à segurança do patrimônio.

O cônego diz ainda que há conscientização dos fiéis em relação à importância do acervo e de que também pode ajudar na segurança do patrimônio sacro. "E sabemos que eles protegem, com muito carinho", afirma.

A Arquidiocese de Belo Horizonte, que comanda paróquias como a de Sabará, afirma trabalhar em sinergia com o Ministério Público.

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