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Máfia siciliana: como foi fotografar o ápice da guerra de facções rivais

Letizia Battaglia, Franco Zecchin e outros fotógrafos temiam pela sua vida enquanto capturavam a realidade de Palermo

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Harvey Day
BBC News Brasil

Para ser fotógrafo de jornal em Palermo, no auge do poder da máfia siciliana, era necessário se acostumar a ser acordado por telefonemas no meio da noite.

Os fotógrafos do jornal italiano L'Ora, famoso por suas investigações sobre a máfia - Getty Images/BBC Brasil

Houve um assassinato, diria o editor, antes de dar o endereço de onde o fotógrafo deveria chegar o mais rápido possível.

Correr para cobrir um assassinato ou uma prisão policial já era bastante perigoso, mas pior era ser enviado para fotografar um funeral da máfia.

Diferente de um repórter, que podia se misturar à multidão, ser fotógrafo significava estar na linha de frente e expor-se, com sua câmera, a familiares furiosos.

O fotógrafo Franco Zecchin lembra bem dessa vida.

A partir do final da década de 1970, ele trabalhou em estreita colaboração com a lendária fotógrafa Letizia Battaglia documentando a guerra mortífera entre gangues rivais da máfia siciliana (também conhecida como "Cosa Nostra") e o derramamento de sangue nas ruas da cidade.

O período brutal ficou conhecido como "la mattanza" (a matança).

Zecchin e Battaglia, falecida em 2022, também eram um casal e estavam apaixonados.

Juntos, organizaram um grupo de fotógrafos independentes (na sua maioria jovens de Palermo ansiosos por aprender o ofício) que trabalhavam para o jornal de esquerda L'Ora, famoso por suas investigações sobre a máfia.

Ali fazia-se um fotojornalismo acelerado, por isso o estilo fotográfico do cotidiano da cidade –e até a impressão e processamento das imagens– tinha que ser rápido, para poder passar à próxima edição.

A Sicília estava, na época, no centro das atenções da imprensa internacional, e os fotógrafos tinham de estar disponíveis 24 horas por dia.

Ir ao cinema significava deixar um bilhete para o gerente de bilheteria para que avisasse caso recebesse uma ligação do jornal.

Os fotógrafos italianos Franco Zecchin e Letizia Battaglia em Palermo, em 1976 - Alberto Roveri/Mondadori Portfolio/Getty Images/BBC Brasil

Ameaças

Zecchin e Battaglia enfrentaram ameaças físicas reais. Eles foram maltratados e chegaram a ter suas câmeras quebradas. Houve épocas em que chegaram a cobrir cinco assassinatos por dia.

Para Zecchin, o momento mais assustador ocorreu quando Battaglia recebeu uma carta anônima ameaçadora alertando-a para deixar a cidade imediatamente e não retornar.

Mas Battaglia, que recebia elogios internacionais pelo seu trabalho, não se deixou intimidar. "É uma questão de caráter", disse Zecchin à BBC Culture.

"Quando estava convencida de algo, ia em direção sem esperar nem pensar muito nas consequências."

Apesar do perigo, ou talvez por causa dele, a vida juntos em Palermo foi "uma aventura", diz Zecchin.

O trabalho de Battaglia e Zecchin esteve em exposição na Fondazione Merz em Turim, ao lado de fotografias de Enzo Sellerio, Fabio Sgroi e Lia Pasqualino.

A exposição "Palermo Mon Amour" retratou a vida pública de Palermo dos anos 1950 a 1992, tanto a violência quanto os momentos tranquilos e cotidianos.

A curadora Valentina Greco, natural de Palermo, disse à BBC Culture que nascer na cidade naquela época "era nascer num período muito violento."

Letizia Battaglia com um paciente de um hospital psiquiátrico de Palermo - Lia Pasqualino/BBC Brasil

E a vida sob a máfia continua a fascinar: em 2023 será lançado um novo museu da máfia em Palermo e o drama policial anglo-italiano "The Good Mothers".

A série, que poderá ser vista na plataforma Disney+, é baseada na história real de três mulheres que lutam para derrubar um clã mafioso por dentro.

Código de silêncio

Leoluca Orlando foi prefeita de Palermo por mais de 20 anos.

E recorda que desde criança a cidade era a capital da máfia.

Era "uma cidade cinzenta", diz ele à BBC Culture, onde todos sabiam do forte controle da máfia, mas ninguém falava sobre isso, graças a um código de silêncio estritamente aplicado, conhecido como "omertà".

Segundo um relatório, a máfia siciliana matou mais de 1.000 pessoas entre 1978 e 1983.

E por causa de seu cargo, Orlando às vezes era considerado o "morto-vivo" da cidade, ou seja, seu nome estava na lista de alvos da máfia.

Em muitas ocasiões, ele teve que alterar seus horários no último minuto para evitar que sua localização fosse descoberta. Ele também morou em um quartel militar por um tempo e, certa vez, tamanho foi o perigo que teve que fugir com a família para a Geórgia.

Em última análise, foram os infames assassinatos dos juízes antimáfia Paolo Borsellino e Giovanni Falcone, em 1992, que provocaram mudanças na Sicília, diz Orlando.

"As pessoas reagiram e disseram: 'Basta! Basta!'", lembra Orlando. "Foi realmente um momento importante."

O início

Zecchin lembra o dia que conheceu Battaglia, num workshop de teatro organizado pelo famoso realizador polonês Jerzy Grotowski, antes de darem início ao trabalho de expor a máfia siciliana.

Battaglia havia levado sua câmera e estava tirando fotos, embora tenham dito a ela que não era permitido.

"Para alguém como Battaglia, isso não era algo que devia ser respeitado", lembra Zecchin com um sorriso. Battaglia simplesmente perguntou: "Por quê?"

Mas alguém a denunciou. E quando pediram que entregasse o filme, ela se recusou.

Embora tivessem acabado de se conhecer, Zecchin elaborou um plano para ajudá-la: em uma loja próxima, ele comprou um novo rolo de filme não utilizado e deu-o a Battaglia, dizendo que fingisse ser seu.

"Isso criou, é claro, algo entre nós", diz Zecchin, "e depois se transformou em uma história de amor."

Poucos meses depois, Zecchin deixou Milão, sua cidade natal, e se juntou a Battaglia em sua Palermo natal.

Battaglia, uma das primeiras fotojornalistas da Itália, certa vez chamou seu trabalho de cobertura da guerra da máfia de "arquivo de sangue".

Boris Giuliano, chefe do "esquadrão voador", no local de um assassinato na Piazza del Carmine, Palermo, 1978. Ele seria assassinado pela máfia um ano depois - Archivo Letizia Battaglia/BBC Brasil

Ícone da fotografia

Autodidata e armada com uma câmera e um scanner de rádio policial, ela ganhou muitos prêmios, incluindo o prestigiado W. Eugene Smith, em 1985.

Em 2019, foi lançado um documentário sobre sua vida, "Shooting the Mafia".

Segundo Greco, Battaglia é "sem dúvida, um dos ícones da fotografia italiana."

Mas nem sempre foi fácil ser um casal de fotógrafos, diz Zecchin, explicando que eles tinham estilos muito diferentes.

Enquanto Battaglia sempre buscava provocar uma reação em seus modelos –"Estou aqui, estou na sua frente, tenho uma câmera"– o estilo de Zecchin é mais discreto, de "tentar ficar o mais silencioso possível."

Na década de 1980, Battaglia, que lutava contra problemas psiquiátricos, segundo Zecchin, e frequentemente fotografava pacientes em instituições psiquiátricas, seguiu carreira na política, atuando na Câmara Municipal de Palermo e na Assembleia Regional da Sicília.

Esperava que a sua contribuição política pudesse ser tão eficaz (ou mais) quanto a de sua fotografia.

'O Poderoso Chefão é perigoso'

Durante décadas, a Sicília e a máfia siciliana capturaram a imaginação de artistas, escritores e cineastas.

O mais notável é o clássico policial de 1972 de Francis Ford Coppola, "O Poderoso Chefão", filmado parcialmente na Sicília, que ficou em segundo lugar na lista da BBC Culture dos melhores filmes americanos já feitos.

Mas embora o prefeito Orlando chame "O Poderoso Chefão" e seu astro Marlon Brando de "fantásticos", ele afirma que o legado do filme de Coppola é "uma tragédia para os sicilianos."

Ao passar a mensagem de que um chefe da máfia como Don Vito Corleone é um bom homem, argumenta Orlando, existe o risco de as pessoas "esquecerem que os mafiosos são criminosos terríveis e cruéis."

Zecchin concorda, acrescentando que "O Poderoso Chefão" e outros filmes e programas de TV semelhantes são "perigosos" porque não mostram de forma adequada o verdadeiro e devastador impacto sobre as vítimas da máfia.

Para Greco, porém, existe um mundo rico de cultura de Palermo que capta a essência da vida na cidade, dos escritos da jornalista Giuliana Saladino até os filmes de Ciprì e Maresco.

O comissário de polícia Boris Giuliano e o tenente-coronel carabinieri Giuseppe Russo, assassinados pela máfia, estão no 'muro da legalidade' em Palermo - Getty Images/BBC Brasil

A mudança é possível

Segundo Orlando, a Palermo de hoje tornou-se um símbolo de que a mudança é possível.

Embora a máfia ainda exista na Sicília, diz ele, viver hoje em Palermo "pode ser emocionante e seguro."

Como explica Orlando, o aeroporto Falcone Borsellino de Palermo, outrora um ponto para que os mafiosos transportassem dinheiro e drogas, e para jornalistas que chegavam para cobrir a violência, atualmente está repleto de turistas.

"Palermo é hoje uma cidade turística", diz Orlando.

"Não era possível imaginar isso quando a máfia governava."

Segundo um especialista em imagens, o "efeito The White Lotus", em referência à comédia dramática da HBO ambientada na ilha italiana, significa que atualmente pode ser difícil reservar um quarto de hotel na Sicília.

Palermo é uma cidade que foi reconstruída de forma contínua, diz Greco, "e isso definitivamente aumenta o fascínio".

"É uma cidade pela qual se tem um grande sentimento de amor", acrescenta. "Já foi um centro de grande violência, mas agora é mais amor."

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