Descrição de chapéu
Livros Rússia

Autora de 'Escute as Feras' narra um povo que sonha reagir à Rússia

Antropóloga Nastassja Martin escreve sobre comunidade que foi silenciada na União Soviética e hoje vê catástrofe se avizinhar

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ludimila Moreira

Historiadora, é doutora em literatura pela Universidade de Brasília

A Leste dos Sonhos - Respostas Even às Crises Sistêmicas

  • Preço R$ 86 (288 págs.)
  • Autoria Nastassja Martin
  • Editora 34
  • Tradução Camila Vargas Boldrini

"A Leste dos Sonhos", de Nastassja Martin, combina elementos de ensaio e autoficção, criando uma narrativa poderosa que se equipara à intensidade de sua obra anterior, "Escute as Feras".

Capa do livro 'A Leste dos Sonhos', de Nastassja Martin
Capa do livro 'A Leste dos Sonhos', de Nastassja Martin - Divulgação

O livro investe em uma abordagem memorialística e etnográfica, em que a autora compartilha suas vivências como pesquisadora dos povos originários do Grande Norte, região que abrange tanto o Alasca quanto a Sibéria.

A autora observa que a maioria dos coletivos formados pelos povos dali optou por viver em vilarejos que, após o colapso da União Soviética, substituíram as fazendas coletivas estatais. No entanto, é nas respostas oferecidas por uma dessas famílias, a de Dária no vilarejo de Esso, que o livro ganha sua força motriz.

Diante de uma crise abrangente, envolvendo aspectos políticos, econômicos, ambientais e psicológicos, a invenção de uma nova realidade ecológica e existencial é desencadeada pelos sonhos de Dária com a floresta. Esses sonhos, silenciados durante o período soviético, agora prenunciam respostas significativas para o retorno de sua família à floresta.

É a partir da escuta e reflexão da antropóloga que conseguimos acessar a importância dos rituais fúnebres e oníricos para os Even, coletivo a que a família pertence, uma ética expressa na sentença "amanhã você voltará diferente", sussurrada por Dária ao corpo da mãe durante seu enterro.

Esses eventos, que envolvem a passagem das almas para o outro mundo e depois a reencarnação, fazem parte da mesma comunicação onírica que os Even mantêm com os seres da floresta —as novas possibilidades de relação com os mortos e os animais são movimentos que indiciam o futuro.

A autora convoca durante o tempo todo o mundo ambivalente dos autóctones, criando proximidade com o jogo de sentidos advindos da relação entre humanos, animais, floresta, capitalismo e Estado. Martin se contrapõe à noção de "autonomia" e de "liberdade" para evidenciar as contradições que compõem a rotina dos Even.

As discussões sobre comunismo, autoritarismo e assimilação de culturas são recorrentes entre a autora, Dária e seus filhos —e até com a figura beckettiana do texto, Appa, o filho do último xamã, que protagoniza um dos momentos mais bonitos do texto à espera da catástrofe final.

O dilema ético da comercialização clandestina das peles de zibelinas e de caviar, à custa daqueles que os Even mais respeitam, os animais, não ganha menor atenção do Estado russo que segue com sua política de controle colonial.

O maior exemplo dado por Martin dessa violenta assimilação é o funcionamento da mina de níquel de Chanutch, pertencente a uma empresa russo-suíça, sem compensação financeira para os autóctones e com escavações que modificam as redes aquíferas subterrâneas e despejam resíduos tóxicos na nascente do rio, na floresta de tundra.

Ao final do livro, a narradora põe os leitores como interlocutores da catástrofe que se avizinha ao mundo dos Even, ao escancarar os danos do níquel em prol do brilho proporcionado ao nosso imaginário de consumo. A propriedade anticorrosiva do elemento é uma espécie de aura de um novo capitalismo industrial que se alastra também para a vida cotidiana, por exemplo em novos designs de eletrodomésticos.

Com uma abordagem antropológica que transforma o campo exploratório em literatura, "A Leste dos Sonhos" analisa as mudanças climáticas, políticas e existenciais sob a perspectiva de uma narradora que procurava, desde o início, falar da emancipação desses seres renascidos após o colapso soviético que recuperam suas potências como indivíduos.

No entanto, tanto comunismo quanto capitalismo assimilam o capital cultural e mineral dos Even. E, nesse encurralamento, restam a Dária e seus parentes a força do sonho, da memória e a utópica crença nos desígnios do governo russo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.