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'Tem gente que xinga. Digo que sou só o papagaio de pirata': a voz por trás do 'Dez, Nota Dez' no Sambódromo

Apresentador Jorge Perlingeiro vê leitura das notas das escolas de samba na Marquês de Sapucaí como 'espetáculo' à parte

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Júlia Dias Carneiro
BBC News Brasil

*Este texto foi originalmente publicado em março de 2019 e republicado com atualizações em alguns trechos.

Ele é a voz que há mais de 30 anos ecoa pelo Sambódromo nas Quartas-Feiras de Cinzas, alastrando agonia ou euforia enquanto lê as notas dadas por cada jurado às escolas de samba do Rio, até que se conheça o campeão de mais um Carnaval.

Há mais de 30 anos, Jorge Perlingeiro é o locutor oficial da apuração do Carnaval carioca - BBC

Lê, não: Jorge Perlingeiro interpreta.

"Aquilo é um espetáculo. Se fosse só para ler, não precisavam de mim", diz o apresentador veterano do Carnaval.

O retumbante "Dez, nota dez", originalmente cunhado pelo produtor Carlos Imperial, ficou famoso Brasil afora na sua voz, e lhe rendeu reconhecimento oficial da prefeitura do Rio.

Em 2015, um decreto assinado pelo então prefeito Eduardo Paes considerou a expressão, "na voz e no modo de falar de Jorge Perlingeiro", "potencialmente um dos principais e mais tradicionais 'Monumentos Linguísticos' do Carnaval Carioca", incluindo-a no chamado "Cadastro do Modo de Falar Carioca".

Nascido no Rio de Janeiro em 1945, Perlingeiro tem mais de 50 carnavais nas costas —e décadas de experiência como apresentador de TV, onde também popularizou o bordão "só se for agora".

Ele começou a se aproximar do universo do samba atuando como jovem repórter responsável pela cobertura carnavalesca na extinta TV Tupi.

Seu papel no Sambódromo vai muito além da apuração. Ele é o atual presidente da Liga Independente das Escolas de Samba do Grupo Especial do Rio (Liesa), e mesmo no cargo de liderança, continuará lendo as notas na apuração de 2024.

Todo ano, na sexta-feira de Carnaval, ele se muda, literalmente, para a Marquês de Sapucaí, e fica "morando" em um contêiner durante todos os dias de festa, até terça-feira.

Mas Perlingeiro sabe que a Quarta-feira de Cinzas, quando se senta à mesa montada sob os arcos do Sambódromo, é o seu momento nos holofotes.

"Igual a mim não tem ninguém. Eu sou móveis e utensílios do Carnaval", brinca.

A famosa 'paradinha'

Depois de virar quatro noites durante os desfiles das escolas do Grupo de Acesso (sexta e sábado) e do Grupo Especial (domingo e segunda), Perlingeiro fica em "regime de silêncio" para se preparar para o ritual de "declamação" das notas na Quarta-feira de Cinzas.

São mais de duas horas ininterruptas percorrendo as notas de cada jurado para cada quesito, e ao fim do processo ele recomeça a depois de um pequeno intervalo, desta vez lendo todas as notas das escolas do Grupo de Acesso (a segunda liga do carnaval).

"Não atendo o telefone, não falo com ninguém", diz ele. "O trabalho demanda muita concentração. Eu não posso errar."

'Fico com pena dos presidentes e diretores das escolas, que ficam naquelas barraquinhas horríveis, trepados um em cima do outro, esperando as notas', diz Perlingeiro - Cris Rodrigues

Os envelopes lacrados com as notas dos jurados chegam em um carro forte, e Perlingeiro é o primeiro a vê-las. A partir de sua leitura, elas vão sendo passadas para um computador e expostas em um painel. Ele fica de olho no ranking que vai somando os pontos para calcular a ênfase demandada por cada nota.

"Eu dou a cada nota a importância que ela tem que ter. Se ela é de rara importância para mudar a posição de uma escola, por exemplo do primeiro pro segundo lugar, tem que haver forte inflexão e a tradicional paradinha", descreve.

A "paradinha", uma pausa dramática, pode anteceder a leitura de uma nota dez em um momento crucial. Mas geralmente é usada para prolongar as reticências dramáticas após um nove.

Ele simula uma leitura —"Nove ponto... oito!", diz, prendendo a respiração no meio, com a pausa que também deixa os integrantes das escolas de samba sem ar.

"Quando a nota é nove, há muita ansiedade para saber o que vem depois", explica.

A pontuação das escolas de samba mudou ao longo das décadas, já tendo sido de um a dez; depois de cinco a dez; depois de sete a dez. No sistema adotado hoje, varia apenas nos décimos entre nove e dez.

"Isso significa que se um quesito tira 9.1, na verdade é como se fosse um. Já tira o cara da competição", diz.

"Tem que ter emoção. Tudo é movido a emoção", resume.

Perlingeiro faz sua parte para que a apuração seja um "espetáculo", mas gostaria que o ritual se transformasse em um evento grandioso.

"Deveria ser um show, em um lugar fechado, com painel bonito, luzes acendendo, sabe? E ar-condicionado. Você não tem ideia do forno que é a Marquês de Sapucaí às 15h45 da tarde em pleno verão", diz, referindo-se ao horário em que a leitura das notas costuma estar ocorrendo.

Para ele, a TV Globo, que é dona dos direitos de transmissão, "não dá muita importância" para a apuração.

"Eu fico com pena dos presidentes e diretores das escolas, que ficam naquelas barraquinhas horríveis, trepados um em cima do outro, esperando as notas", diz.

"Tinha que ter um bar, com garçons servindo bebidas nas mesas... Deveria ser um espetáculo", sonha.

"É o grande filé mignon do carnaval. A gente desfila domingo e segunda, e na quarta-feira espera ansiosamente para saber quem vai ganhar", argumenta.

Saia-justa

Tal qual atores que vivem vilões de novelas, Perlingeiro já foi interpelado nas ruas com cobranças por notas ruins que leu para as escolas.

"Tem gente que xinga, chega perguntando por que eu fui dar 9.7 para a escola deles. Eu digo que sou só o papagaio de pirata. Eu leio o que tá escrito", defende-se.

Já viveu momentos tensos na apuração, como o ano em que a Porto da Pedra fez "o melhor desfile da sua história", ele descreve, e parecia encaminhada para estar entre as seis melhores, o que lhe colocaria no Desfile das Campeãs.

De repente lhe chegou um envelope com um 8.4 para a escola (na época a pontuação variava entre 7 e 10).

"A nota tirava 16 pontos (décimos) da escola. Eu travei. Mas tive que ler", lembra.

Instantes depois, Perlingeiro diz que o presidente da escola subiu à mesa da apuração e cochichou em seu ouvido: "Tem certeza que você não leu essa nota errado?"

Ele respondeu constrangido: "Presidente, eu gostaria muito de ter errado, mas é isso mesmo."

Jingle para Crivella

Jorge Perlingeiro sorrindo para foto em frente a certificados - BBC

Perlingeiro se formou em Direito, mas iniciou a trajetória de apresentador de TV puxado pelo pai, Aérton Perlingeiro, que comandava o programa Almoço com as Estrelas na TV Tupi do Rio.

Criou o programa e a marca Samba de Primeira e criou o troféu Pandeiro de Ouro, que homenageou nomes do samba e da música popular brasileiro durante mais de 25 anos, e teve sua última edição em 2015.

"O Samba de Primeira era uma vitrine para os sambistas. Posso dizer sem medo de errar que quase todos os sambistas começaram comigo no programa", afirma, citando veteranos como Jorge Aragão, Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal e Dudu Nobre.

Em 2016, durante a campanha para a prefeitura do Rio, Perlingeiro emprestou sua voz para a campanha do bispo Marcelo Crivella, que acabou sendo eleito.

A gravação "Crivella é dez, nota dez" foi usada nas redes sociais e no horário eleitoral da campanha. O ex-prefeito contou com amplo apoio da Liesa e das escolas de samba.

Depois, entretanto, o mandato de Crivella foi marcado por desavenças com as escolas de samba, com sucessivas reduções do valor repassado pela prefeitura às agremiações, e arrependimento pelo apoio dado no período eleitoral.

Perlingeiro afirma não ter se arrependido de apoiar a campanha de Crivella, mas diz ter ficado "decepcionado" com sua atitude para com o carnaval, destacando a importância da festa para impulsionar o turismo e a arrecadação de impostos no Rio.

Perlingeiro tem o decreto descrevendo o reconhecimento ao seu "Dez, nota dez!" emoldurado em seu escritório na Barra da Tijuca.

Quando foi publicado, em 2015, diz não ter dado muita importância de início.

Mas hoje gosta de imaginar que, de repente, daqui a cem anos, alguém vai ler alguma coisa sobre o passado, e vai saber que "existiu um cara que ficou, sei lá, 30 anos e tantos na apuração, e imortalizou essa expressão", descreve.

"São coisas que se perpetuam e não saem mais da boca do povo", orgulha-se

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