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Livros

Jon Fosse, Nobel de Literatura, se dedica a jovens em novos livros

Fluxos de consciência e narração alucinada dão o tom de 'A Casa de Barcos' e 'Trilogia', os lançamentos do escritor norueguês

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Alcir Pécora

Professor titular de teoria literária da Unicamp

A Casa de Barcos

  • Preço R$ 64,90 (144 págs.); R$ 45,40 (ebook)
  • Autoria Jon Fosse
  • Editora Fósforo
  • Tradução Leonardo Pinto Silva

Trilogia

  • Preço R$ 69,90 (200 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Jon Fosse
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Guilherme da Silva Braga

Dois livros de Jon Fosse, escritor e dramaturgo norueguês vencedor do Nobel de Literatura do ano passado, acabam de ser lançados no Brasil.

Homem branco de cabelo grisalho olha para o lado
Jon Fosse, escritor e dramaturgo norueguês vencedor do Nobel de Literatura de 2023 - Agende Brun/Det Norske Samlaget/Divulgação

O mais antigo é "A Casa de Barcos", de 1989, que conta a história da amizade entre dois garotos que crescem juntos numa pequena cidade costeira da Noruega, formam uma banda de rock na adolescência e começam a se interessar por garotas. Aos poucos, porém, brotam entre eles rivalidades e mágoas profundas, que nunca chegam a enunciar ou a superar.

Ilustração de um mar vermelho com um pequeno barco navegando
Capa de 'A Casa de Barcos', livro escrito por Jon Fosse em 1989 - Divulgação

A narrativa em primeira pessoa é entregue ao rapaz que permanece na cidade, e que, aos 30 anos, sem estudo ou trabalho, mora ainda com a mãe, como que congelado no tempo da infância.

O outro amigo se torna professor de música e, após dez anos fora, volta casado e com duas filhas para passar férias no local, mas ele tampouco parece ter superado o passado. Quando sua mulher demonstra interesse pelo antigo amigo, as velhas rivalidades suspensas no tempo se precipitam, desta vez com consequências trágicas.

O mais atraente no livro, porém, não é a angústia juvenil que parece incrustada nos protagonistas, mas a forma como ela se manifesta no fluxo de consciência do narrador, girando sempre em torno das mesmas frases, como se fossem ecos soltos de pequenos eventos batendo contra o muro da memória.

Para dar uma ideia disso, basta notar que as duas frases que abrem a novela —"eu não saio mais de casa, uma angústia tomou conta de mim"—, juntas ou separadas, são repetidas dezenas de vezes, a pontuar toda a narrativa. A repetição dá a ela um viés engasgado, ou melhor ainda, obnubilado, de modo que a consciência já não reage diretamente aos estímulos da realidade presente, mas a fixações psíquicas insuperáveis.

Mesmo as frases que não se repetem aparecem geralmente apenas ligadas pela conjuntiva "e", a relacionar ações mínimas sem estabelecer conexão entre elas. Notável ainda é quando o tartamudeio do fluxo de consciência se desdobra numa espécie de alucinação de segundo grau, e o narrador passa a imaginar os desvarios de ciúmes do amigo retornado, sem que possamos saber com certeza se a obsessão é fruto do delírio de quem conta, do rival, ou de ambos.

O segundo livro, "Trilogia", é de dez anos atrás e se passa no mesmíssimo meio fechado dos vilarejos às margens dos fiordes noruegueses. Desta vez, porém, a história acompanha um casal de adolescentes, sendo que o rapaz vem de uma linhagem de violinistas talentosos, cuja maldição é abandonar os lares que formam; a menina, por sua vez, está nos últimos dias de uma gravidez precoce. Para complicar, eles perdem o lugar onde moram de favor e têm de sair para a estrada em busca de um novo lar.

Na pintura aparece um grupo de pessoas com uma casa alta de janelas iluminadas ao fundo
'The Storm', pintura de Edvard Munch que ilustra a capa de 'Trilogia', da Companhia das Letras - Divulgação

Depois de andar à exaustão, sem encontrar abrigo e se aproximar a noite chuvosa e fria, o rapaz acaba forçando a entrada na casa de uma idosa que havia negado um quarto a eles. A situação dramática se acirra ainda mais quando a menina entra em trabalho de parto. A partir daí, a sequência das ações é inexorável como o fado —e obviamente não acaba bem.

O que mais chama a atenção, porém, é o tipo de narração usada por Fosse, que combina o fluxo de consciência com o discurso indireto livre, embaralhando na narração falas e pensamentos das várias personagens.

Em relação a "A Casa de Barcos", "Trilogia" apresenta uma radicalização gráfica —dispensa as maiúsculas do início da frase, os pontos finais, os sinais de interrogação e ainda os travessões dos diálogos. Por outro lado, recua nas repetições de frases completas.

O fundamental das inovações formais, porém, permanece —um relato conduzido por frases que vão se ajuntando umas às outras, cujo melhor efeito é a sobreposição de espaços e tempos diferentes, assim como uma constante abertura entre sonho e realidade. Isso dá ao conjunto um viés onírico que, por vezes, se aproxima do conto folclórico, outras vezes de uma fábula arcaica e alegórica.

A eventual fragilidade, evidente no livro mais recente, é a do sentimentalismo que se instala sorrateiramente no sonambulismo nostálgico das personagens.

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