Dois livros de Jon Fosse, escritor e dramaturgo norueguês vencedor do Nobel de Literatura do ano passado, acabam de ser lançados no Brasil.
O mais antigo é "A Casa de Barcos", de 1989, que conta a história da amizade entre dois garotos que crescem juntos numa pequena cidade costeira da Noruega, formam uma banda de rock na adolescência e começam a se interessar por garotas. Aos poucos, porém, brotam entre eles rivalidades e mágoas profundas, que nunca chegam a enunciar ou a superar.
A narrativa em primeira pessoa é entregue ao rapaz que permanece na cidade, e que, aos 30 anos, sem estudo ou trabalho, mora ainda com a mãe, como que congelado no tempo da infância.
O outro amigo se torna professor de música e, após dez anos fora, volta casado e com duas filhas para passar férias no local, mas ele tampouco parece ter superado o passado. Quando sua mulher demonstra interesse pelo antigo amigo, as velhas rivalidades suspensas no tempo se precipitam, desta vez com consequências trágicas.
O mais atraente no livro, porém, não é a angústia juvenil que parece incrustada nos protagonistas, mas a forma como ela se manifesta no fluxo de consciência do narrador, girando sempre em torno das mesmas frases, como se fossem ecos soltos de pequenos eventos batendo contra o muro da memória.
Para dar uma ideia disso, basta notar que as duas frases que abrem a novela —"eu não saio mais de casa, uma angústia tomou conta de mim"—, juntas ou separadas, são repetidas dezenas de vezes, a pontuar toda a narrativa. A repetição dá a ela um viés engasgado, ou melhor ainda, obnubilado, de modo que a consciência já não reage diretamente aos estímulos da realidade presente, mas a fixações psíquicas insuperáveis.
Mesmo as frases que não se repetem aparecem geralmente apenas ligadas pela conjuntiva "e", a relacionar ações mínimas sem estabelecer conexão entre elas. Notável ainda é quando o tartamudeio do fluxo de consciência se desdobra numa espécie de alucinação de segundo grau, e o narrador passa a imaginar os desvarios de ciúmes do amigo retornado, sem que possamos saber com certeza se a obsessão é fruto do delírio de quem conta, do rival, ou de ambos.
O segundo livro, "Trilogia", é de dez anos atrás e se passa no mesmíssimo meio fechado dos vilarejos às margens dos fiordes noruegueses. Desta vez, porém, a história acompanha um casal de adolescentes, sendo que o rapaz vem de uma linhagem de violinistas talentosos, cuja maldição é abandonar os lares que formam; a menina, por sua vez, está nos últimos dias de uma gravidez precoce. Para complicar, eles perdem o lugar onde moram de favor e têm de sair para a estrada em busca de um novo lar.
Depois de andar à exaustão, sem encontrar abrigo e se aproximar a noite chuvosa e fria, o rapaz acaba forçando a entrada na casa de uma idosa que havia negado um quarto a eles. A situação dramática se acirra ainda mais quando a menina entra em trabalho de parto. A partir daí, a sequência das ações é inexorável como o fado —e obviamente não acaba bem.
O que mais chama a atenção, porém, é o tipo de narração usada por Fosse, que combina o fluxo de consciência com o discurso indireto livre, embaralhando na narração falas e pensamentos das várias personagens.
Em relação a "A Casa de Barcos", "Trilogia" apresenta uma radicalização gráfica —dispensa as maiúsculas do início da frase, os pontos finais, os sinais de interrogação e ainda os travessões dos diálogos. Por outro lado, recua nas repetições de frases completas.
O fundamental das inovações formais, porém, permanece —um relato conduzido por frases que vão se ajuntando umas às outras, cujo melhor efeito é a sobreposição de espaços e tempos diferentes, assim como uma constante abertura entre sonho e realidade. Isso dá ao conjunto um viés onírico que, por vezes, se aproxima do conto folclórico, outras vezes de uma fábula arcaica e alegórica.
A eventual fragilidade, evidente no livro mais recente, é a do sentimentalismo que se instala sorrateiramente no sonambulismo nostálgico das personagens.
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