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Livros África

Maryse Condé se esforça até demais para defender tese decolonial em livro

'O Fabuloso e Triste Destino de Ivan e Ivana' é bem-vindo em tempos de reducionismos, mas peca por excesso de explicações

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Diogo Bercito

Mestre em estudos árabes pela Universidade Georgetown, foi correspondente da Folha em Jerusalém e em Madri

O Fabuloso e Triste Destino de Ivan e Ivana

Primeiro, Maryse Condé viveu as consequências do colonialismo na sua terra natal, Guadalupe, um território francês no Caribe. Depois, passou pela mesma experiência nos diversos países africanos em que viveu —potências europeias deixaram também ali um persistente rastro de pobreza e violência.

Essa vivência é um dos eixos de sua obra literária, que explora a intersecção de categorias como raça, gênero e classe social. E é uma faceta evidente em "O Fabuloso e Triste Destino de Ivan e Ivana", lançado em 2017 e publicado agora no Brasil pela Rosa dos Tempos. A tradução é da escritora Natalia Borges Polesso, autora de "Amora".

Duas silhuetas humanas com roupas coloridas se viram de costas sob um grande círculo branco, simbolizando o sol, sobre um fundo bicolor que transita de vermelho para rosa, sugerindo um pôr do sol.
Ilustração de capa de 'O Fabuloso e Triste Destino de Ivan e Ivana', livro da guadalupense Maryse Condé lançado no Brasil pelo selo Rosa dos Ventos - Divulgação

No romance, Condé narra a vida de dois gêmeos nascidos em Guadalupe. Os irmãos são tão parecidos que as pessoas os confundem na rua. São tão próximos, ademais, que sua relação flerta com o incesto —para escândalo não só de personagens de dentro da narrativa como de fora, caso de alguns leitores que criticaram o livro nas redes sociais.

Ivan e Ivana se mudam para o Mali, na África, e depois para a França. Conhecem, no percurso, diferentes vítimas do colonialismo e da hegemonia europeia.

Infortúnios levam cada um para um lado. Ela vira policial, enquanto ele se enrosca com grupos radicais, envolvendo-se com uma rede terrorista que planeja um atentado em Paris.

É bonito como, nesse processo, Condé dá voz não apenas a essas visões opostas como a de todas as outras ao redor de Ivan e Ivana. A autora desvia da narrativa principal para nos contar quem são os outros personagens mesmo quando eles aparecem por pouquíssimas páginas. Dá a eles nomes, detalha suas origens, fala de seus sonhos e de seus receios.

Talvez essa escolha criativa seja parte do projeto decolonial de Condé. Ao retirar o foco dos protagonistas e distribuí-lo pelos coadjuvantes, parece dizer que todo o mundo merece nossa compaixão e que as histórias não são feitas só de grandes personagens. Todos trazem a mesma riqueza interior e semelhantes angústias.

Também é feliz sua opção, decerto política, de espalhar diversas referências e símbolos das culturas caribenhas e africanas pelo texto —assim como a de não explicá-las demais, o que deixaria o livro com jeito de material didático. Aparecem, por exemplo, instrumentos e gêneros musicais típicos. Há ainda alguma ênfase na figura do "griô", uma espécie de historiador da tradição oral da África Ocidental.

Mais importante, Condé faz um louvável esforço para analisar as circunstâncias que condicionam as decisões dos gêmeos, buscando explorar o contexto por trás delas em vez de julgá-los.

Ambos, aliás, parecem estar corretos em certa medida, ainda que tomem posições opostas no combate ao terror. O texto parece perguntar ao leitor: o que faria no lugar deles? Caso fosse injustiçado, tomaria o lado do opressor ou o dos oprimidos?

Tanto é que, no prefácio à edição brasileira, Djamila Ribeiro elogia a sofisticação com que Condé trata do radicalismo e da resistência, explorando contradições.

A abordagem da guadalupense é mesmo rara, a julgar pela cobertura que a mídia às vezes faz do tema. Também é bem-vinda nestes tempos de reducionismos, o que já justifica a leitura do livro. Mas a tal sofisticação é muito mais analítica do que literária.

Condé faz tanto esforço para expressar sua tese que às vezes as costuras do texto ficam expostas. Mastiga demais algumas explicações sobre opressores e oprimidos, tirando do leitor o prazer de chegar sozinho a essas conclusões.

Em determinado trecho, por exemplo, um personagem sugere que o destino de fulano "era uma ilustração contundente da globalização". Além disso, a narradora aparece mais de uma vez para, quebrando a quarta parede, dirigir-se diretamente ao leitor: veja, foi neste exato instante, por conta desse evento, que ele tomou essa decisão.

Dito de outra maneira: Condé se antecipa e, ao mesmo tempo em que conta a história, já a explica. O efeito é o de quando alguém elucida a piada —perde a graça.

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