Entenda polêmica sobre uso de IA para restaurar filmes antigos como 'Titanic'

Produtoras utilizam inteligência artificial para corrigir imagem de longas, e críticos dizem que resultado fica irreal e estranho

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Calum Marsh
The New York Times

Em 1998, Geoff Burdick, um executivo da Lightstorm Entertainment, produtora de James Cameron, estava diante de um monitor de 12 polegadas, preparando cuidadosamente "Titanic" para o lançamento em fita VHS.

O processo feito num computador de última geração tornou possível para Burdick e sua equipe examinar minuciosamente o filme, quadro a quadro, removendo pequenas imperfeições do filme original.

Saíram pequenos arranhões, fragmentos de sujeira e até manchas de água que borravam a imagem. O computador podia apagar as imperfeições usando uma ferramenta que ocultava os defeitos com informações de outro quadro.

Kate Winslet e Leonardo DiCaprio no filme "Titanic", de James Cameron
Kate Winslet e Leonardo DiCaprio no filme "Titanic", de James Cameron - Divulgação

Burdick, agora vice-presidente sênior da empresa, diz que esse processo parecia mágica na época. Mas os resultados não foram bem recebidos.

"Muitas pessoas diziam que este era o VHS mais bonito que já tinham visto na vida porque tínhamos nos livrado daquela confusão", ele relembra. "Mas muitas outras falavam 'isso não está certo, você removeu tudo! Se a versão original está arranhada, deveríamos ver esse arranhão'. Elas eram muito radicais."

Nas décadas seguintes, os formatos de vídeo doméstico alcançaram resoluções cada vez mais altas, com VHS e LaserDisc dando lugar ao DVD e ao Blu-Ray, e eventualmente a Blu-Rays de ultradefinição.

À medida que a qualidade da imagem melhorou, as ferramentas de restauração evoluíram também, tornando mais fácil para os cineastas ajustarem seus trabalhos com computadores.

Vários filmes de Cameron, incluindo "O Abismo", "True Lies" e "Aliens, O Resgate", foram recentemente lançados em Blu-Ray de ultradefinição, com versões recém-restauradas mais nítidas do que nunca. O resultado vem a partir da atenção meticulosa da Lightstorm e do próprio Cameron. "Estão com a melhor definição que já tiveram", dz Burdick.

Mas, assim como o antigo vídeo doméstico do "Titanic", essas restaurações têm sido controversas, com muitos espectadores se opondo veementemente ao visual impecável. Os críticos reclamam especialmente do fato de que essas versões foram restauradas, em parte, com uso de inteligência artificial.

A Park Road Post Production, produtora da Nova Zelândia de propriedade do cineasta Peter Jackson, ajudou a limpar os filmes de Cameron usando parte do mesmo software usado nos documentários de Jackson "The Beatles: Get Back" e "Eles Não Envelhecerão". As imagens dos clássicos blockbusters de Cameron foram refinadas de maneira que muitos acham estranha e pouco natural.

A quantidade de detalhes é impressionante. A água parece cristalina; as cores são brilhantes e vívidas, enquanto as cores escuras são profundas e intensas. Algumas superfícies parecem pouco brilhantes, com um brilho polido que parece quase laqueado. Pode ser difícil apontar o que mudou. Mas há uma diferença, e, a depender do espectador, pode parecer estranho.

"É plástico. A textura da pele não parece correta. Tudo parece um pouco irreal", diz o jornalista Chris Person.

Person está entre os que são céticos sobre a necessidade de usar inteligência artificial para tentar melhorar a aparência de filmes. Embora diga que existem "casos de uso legítimos" para a IA na restauração, como quando a versão original de um filme foi perdido ou danificado, ele suspeita que com "True Lies", a ferramenta foi usada só porque estava disponível.

Os lançamentos recentes de Cameron, especialmente "True Lies", tornaram-se alvo de debate acalorado na internet. Críticos disseram que a versão foi excessivamente higienizada, com um argumentando que parece "quase artificial". Fóruns virtuais estão repletos de reclamações, que se espalham também pelas redes sociais.

Dan Best, gerente geral da Park Road Post, reconhece o debate em torno da remasterização de filmes. "A questão é que a tecnologia está mudando", diz. "As pessoas estão assistindo as coisas em resoluções muito mais altas no momento. Portanto, muitos filmes recentes estão sendo aprimorados para essas novas plataformas de visualização."

O que ele quer dizer é que lançamentos de vídeo doméstico eram adequados para a era das TVs de tubo e dos vídeos em qualidade 1080p. Mas na era das telas de LED e das TVs em 4K, as restaurações precisam ir além para atender aos padrões cada vez mais altos.

Burdick, que lidou com esse tipo de crítica desde "Titanic", diz que "não se pode agradar a todos no final das contas", embora pense que a discussão em torno desses Blu-Rays de ultradefinição está especialmente acalorada.

"As pessoas amam esses filmes, o que eu acho ótimo", disse ele. "E elas levam esse amor para o coração. Então, quando o filme de repente não parece como elas se lembram de ter visto ou simplesmente não parece como elas acham que deveria, ficam chateadas. O que se pode fazer?"

Não ajuda o fato de que há um estigma em torno da tecnologia: Os críticos não se irritam apenas com a aparência dessas restaurações —eles também não estão satisfeitos porque há uso de ferramentas de inteligência artificial.

Mas essa desaprovação é baseada parcialmente em concepções errôneas, afirma Burdick. "As pessoas ouvem que estão usando IA e logo pensam em navios piratas e xícaras de café, diz ele, fazendo referência a um vídeo viral recente, feito com IA, que exibe um navio em miniatura navegando numa xícara de café.

"Mas ninguém está fazendo isso com esses filmes. Não é o mesmo tipo de IA, conceitualmente. É mais no sentido de 'esse pedaço do filme parece meio ruim, e podemos usar um software para melhorá-lo, com cuidado'."

É de se entender a relutância em aceitar o uso de IA dada algumas controvérsias recentes. Em 2021, o cineasta Morgan Neville foi criticado quando revelado que seu documentário "Roadrunner" usou IA para criar uma versão deepfake da voz de Anthony Bourdain para narração. No mês passado, o filme de terror "Late Night with the Devil" foi criticado por conter imagens geradas por IA. Alguns críticos pediram boicote ao filme.

"Get Back" e "Eles Não Envelhecerão", que têm imagens da Primeira Guerra Mundial, usaram os mesmos processos de IA, mas não foram tão criticados.

Isso se deve em parte à condição do material de origem. Ambos os filmes utilizaram imagens de arquivo danificadas e pareceram reverter a deterioração. Em contraste, as restaurações recentes de Cameron foram baseadas em novas digitalizações 4K do filme original, nenhum dos quais precisava de reparos desse tipo.

"Não é uma questão da versão original estar danificada", diz Burdick. "Pode haver um milhão de razões pelas quais não está perfeito. Então agora há uma oportunidade de simplesmente melhorar estas produções."

O uso de inteligência artificial pode corrigir o foco de uma imagem borrada, bem como fazer outros ajustes criativos. "Se fazer parecer um pouco melhor, por que não?", questiona Burdick.

Para Person, o problema é no que essas pequenas melhorias implicam: uma aparência estranhamente falsa. "Não quero parecer chato, mas isso é gritante", disse Person. "Dizem que é melhor, e aí você se sente uma pessoa amaldiçoada por conseguir enxergar como o resultado pode ser ruim."

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