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'A Corte Marcial do Navio da Revolta' é metáfora sobre loucura e cinismo

Filme derradeiro de William Friedkin, morto em 2023, mostra obsessão pela ambiguidade e incerteza nas relações humanas

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Marcelo Miranda

A Corte Marcial do Navio da Revolta

  • Onde Disponível no Paramount+
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Kiefer Sutherland, Jason Clarke, Lance Reddick, Monica Raymund
  • Produção Estados Unidos, 2023
  • Direção William Friedkin

É no pouco glamouroso cenário de um tribunal militar da Marinha dos Estados Unidos que transcorre quase toda a ação de "A Corte Marcial do Navio da Revolta", derradeiro trabalho de William Friedkin, morto em agosto de 2023 aos 87 anos.

O filme chega ao Brasil em streaming e fecha um ciclo curioso na obra do cineasta. Seu primeiro longa foi o documentário televisivo "O Povo versus Paul Crump", de 1962, que tratava de um homem condenado à morte por um crime que Friedkin, com 26 anos, acreditava não ter sido cometido pelo acusado.

Em outras três ocasiões, Friedkin, notabilizado pelo sucesso de "O Exorcista", de 1973, desenvolveu dramas nervosos sobre verdade, farsa e retórica a partir de cenários jurídicos. Em 1987, fez "Síndrome do Mal", sobre um psicopata no banco dos réus. Em 1997, veio o telefilme "12 Homens e uma Sentença", com uma dúzia de jurados numa sala para decidir o destino de um adolescente acusado de matar o pai. Em 2000, "Regras do Jogo" tratou de militares às voltas com decisões legalmente questionáveis.

Cena do filme 'A Corte Marcial do Navio da Revolta'
Cena do filme 'A Corte Marcial do Navio da Revolta' - Divulgação

"A Corte Marcial do Navio da Revolta" é extensão natural a algumas preocupações de Friedkin, especialmente sua obsessão pela ambiguidade e incerteza nas relações humanas. Mais do que falar de militarismo, o que há neste filme-testamento é simbolicamente um palco, uma plateia e diversos atores que entram e saem de cena no intuito de convencerem os interlocutores da verdade de suas palavras.

O cineasta compreende que um tribunal, para além de julgamentos, condenações e absolvições, é principalmente espaço de performance. Quem por ali circula quer única e exclusivamente convencer os demais do que está dizendo. A verdade, então, é manipulável, relativa e nem sempre bem-vinda. Mas como atestá-la? Eis o desafio sobre o qual o filme assume os riscos e quer capturar a atenção.

O filme de Friedkin adapta uma peça de teatro de 1953 escrita por Herman Wouk, que por sua vez transpunha aos palcos o seu romance de lançado no ano anterior. Foi o livro que serviu de base ao clássico "A Nave da Revolta", de 1954, com Humphrey Bogart no papel de Queeg.

"A Corte Marcial do Navio da Revolta", então, não é um remake desse filme nem outra versão do romance, mas uma atualização da peça, que chegou a ser adaptada para TV em 1988 por outro grande nome de Hollywood, Robert Altman.

Rigoroso na forma, "A Corte Marcial do Navio da Revolta" se concentra no espaço do tribunal e na fluidez possível de uma narrativa direta e objetiva. A câmera circula discretamente, os cortes vêm no "timing"de falas e reações, e a perspectiva visual dominante é a geografia exígua do lugar, com um ou outro enquadramento mais aproximado de quem está depondo.

Num único instante, por isso mesmo perturbador, há o close detalhado de determinado elemento —as mãos nervosas do capitão Queeg a mexerem em bolinhas de gude prateadas enquanto ele tenta reorganizar o pensamento diante de um advogado que o questiona ferozmente.

A escolha por mirar só esse detalhe em quase duas horas de filme é essencial porque Friedkin trata principalmente de investigar os limites entre sanidade e descontrole, ou a diferença entre personalidade forte e disrupção mental.

Queeg, interpretado por um excelente Kiefer Sutherland, está no tribunal como vítima de motim, enquanto o tenente Maryk, vivido por Jake Lacy, é julgado por trair o superior numa manobra arriscada no mar do Golfo Pérsico dois meses antes.

Mas o que se busca compreender, ao menos na estratégia do ambíguo advogado, papel de Jason Clarke, é o comportamento errático e instável de Queeg. Estamos diante de um profissional militar altamente competente, às custas da empatia e do desrespeito ao próximo, ou de um sociopata transtornado e paranoico e, por isso, um risco ao país?

O filme faz da dúvida a própria gramática de sua feitura, deixando que evidências venham em relatos orais e, talvez até mais importante, do que não é dito no palco performático do tribunal. O epílogo, um dos mais brutos na carreira de Friedkin, explicita o cinismo e oportunismo inerentes a situações-limite em que, para alguém ganhar, outro precisa perder. É o fecho coeso a uma obra artística monumental.

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