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Podcast questiona valor e aborda ética de contar histórias de pessoas comuns

'Shocking, Heartbreaking, Transformative' mostra relação inconciliável entre documentarista e seus personagens

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São Paulo

"Sua história precisa ser contada? Conte num documentário." Foi com essa chamada que a jornalista Jess Shane deu início à busca por personagens para seu novo podcast.

Cerca de 200 pessoas a contataram, das quais 30 foram entrevistadas até que ela chegasse às três que seriam, enfim, seus personagens —Ernesto, modelo de ascendência latina; Judy, uma mulher branca de 70 anos, sem-teto; e Michael, um homem negro de 50 anos, rapper e escritor.

"Shocking, Heartbreaking, Transformative", ou chocante, comovente, transformador, é em parte sobre as histórias dessas pessoas, mas é em especial sobre as dinâmicas de poder e disputas entre a documentarista e seus personagens a respeito do que contar.

No alto lê-se em letras vermelhas e em caixa alta o título do podcast "Shocking, Heartbreaking Transformative". Do lado esquerdo há um rosto de mulher branca com olhos azuis e uma expressão séria. Uma lágrima escorre de seu olho. Do lado direito, há a imagem de uma página de formulário de consentimento do próprio podcast. No canto superior direito há um punhado de notas de dólar empilhadas
Detalhe de cartaz do podcast 'Shocking, Heartbreaking, Transformative', produção da jornalista Jess Shane para a Radiotopia/PRX - Divulgação Radiotopia/PRX

Embora menos recorrente em podcasts do que no cinema, a abordagem deste desequilíbrio não é algo novo, e Shane sabe. Mas aqui se trata de atualizar essa crítica, pensando no cenário atual do mercado de mídia, marcado pela supervalorização das histórias de gente comum.

O que se apresenta para nós nos cinco episódios da série é essa tortuosa tentativa de um trabalho conjunto, que a todo instante mostra o choque das motivações, dos desejos e das expectativas da documentarista com aqueles de seus sujeitos.

Há um consenso impossível de ser alcançado sobre o que deve ser contado e como. Enquanto os personagens se interessam por abordagens mais autocentradas e enaltecedoras, em que seus dramas e anseios pessoais sejam valorizados, Shane os olha mais de fora, como partes de contextos mais amplos.

Um acordo sem dissonâncias se mostra inalcançável. Resta a transparência de expor o inconciliável e as contradições dessas relações. É um caminho desconfortável, mas que nos leva a lançar uma saudável suspeita sobre como histórias são criadas e contadas.

A série parte de um dilema visto e vivido por Shane —as ditas boas regras para se fazer documentários não parecem suficientes para que se estabeleça uma relação ética com os sujeitos de quem se fala, afinal, elas não evitam que essas histórias sejam exploradas sem que eles recebam algo em troca.

E se elas fossem deliberadamente quebradas, algo mudaria?

É isso que a jornalista tenta. Ela decide remunerar seus personagens com US$ 20 por hora que passem com ela, se aproxima de modo pessoal deles e dá aos três o poder de escolherem o que querem contar de si. Mais ainda —ela tocará para todos uma primeira versão do produto que criar e permitirá que eles solicitem mudanças.

Como ela diz, é uma tentativa de propor uma mudança de regras, mas feita ainda de cima para baixo. É um experimento feito para não dar certo, diz ela, em entrevista. Se levar a cabo o que permitiu, o resultado não será o que ela quer. Se decidir tomar as rédeas, trairá seu próprio propósito.

Na raiz dessa empreitada está um incômodo mais profundo da jornalista com seu próprio meio —a sensação de que parte do mercado de mídia criou para si uma narrativa de que há um valor social intrínseco em se contar histórias e promover emoções no público.

Num ensaio complementar ao podcast, Shane recupera com apoio da socióloga Sujata Fernandes como esse fetiche pelo "storytelling" se disseminou de forma viral a partir dos anos 2010, na ascensão da onda do "pessoal é político".

Contar histórias, ter personagens e arcos narrativos se tornou um suposto recurso mágico para dar carne aos ossos de diferentes tipos de discurso, seja o jornalístico, o publicitário ou o acadêmico.

"Foi vendida para nós essa ideia de que sentir algo é o mesmo que fazer algo. Acho que há muito de um ativismo de sofá alimentado por essa noção de que compartilhar uma história é útil em si mesmo e que ouvir essas histórias é útil também. E penso que isso faz com que muitos jornalistas acreditem que contar uma história vai mudar alguma coisa porque vai esclarecer coisas para as pessoas", ela diz. "Mas o que elas vão fazer com esse esclarecimento? Para quem isso é?"

A foto mostra quatro pessoas em pé numa pequena sala. À esquerda uma mulher mais velha, branca, de óculos e cabelos longos e grisalhos. Im jovem pardo, de bigode e cabelos pretos, está a seu lado, olhando para ela e segurando um microfone em sua direção. Ao lado dele, uma mulher branca com roupa azul escuro. Ao lado dela, um homem alto e negro, de cabelo, curto.
A jornalista Jess Shane reunida com os três personagens de seu podcast, Judy, mais à esquerda, Ernesto, ao lado de Judy, e Michael, mais à direita - Arquivo pessoal

Mas é preciso lembrar que se trata sempre de produzir mercadorias. Fazer de uma história algo chocante, comovente, transformador é dar a elas um formato comercialmente viável para quem produz.

O problema não se resume ao fato de as histórias pessoais se tornarem produtos comerciais, mas está em quem ganha o quê nessa transação. É conveniente para produtores justificar esse investimento em nome da promoção da empatia com os sujeitos retratados, ou da conscientização do público. Agora, se o sujeito retratado recebe algo com isso —ou se tem letramento midiático para entender o que ocorrerá com o que contou—, aí é outra história.

A crítica levantada por Shane pode sugerir que só resta suspeitar de qualquer produção que recorra a narrativas pessoais. Não se trata disso. Ela considera que esse formato tem sua força, em especial quando é capaz de promover mudanças sistêmicas.

Mas como realizadora interessa a ela mais deixar as histórias com protagonistas individuais de lado e trabalhar com uma polifonia de vozes, mostrando os entrelaçamentos entre indivíduos e estruturas sociais.

Como exemplo, ela menciona o podcast documental "The Retrievals", do New York Times, que trata do que sofreram mulheres que buscaram engravidar através da clínica de fertilidade da Universidade Yale —ainda que a enfermeira que desviava anestésicos tenha papel fundamental, a série não é sobre ela.

A experiência com este seu podcast atual mostrou a ela como é difícil alcançar benefícios mútuos com os sujeitos sobre quem se fala —seja porque os ganhos financeiros e simbólicos são desiguais ou porque os anseios criativos de um sujeito se dão à custa daqueles de outro.

Para ser frutífera a todos, a experiência colaborativa deve ser pensada de forma horizontal desde o princípio, orientada pela perspectiva de se compartilhar objetivos com aqueles de quem se vai falar, diz Shane.

É possível ouvir em "Shocking, Heartbreaking, Transformative" também um documento dessa busca de uma jornalista por qual voz quer assumir. São seus os conflitos que ganham o primeiro plano da série, mesmo quando ela precisa tomar as decisões que menos gostaria.

É um trabalho que desorienta, provoca e surpreende ao documentar suas próprias idas e vindas sem condescendência. Acaba, por tudo isso, fazendo jus ao próprio nome.

Shocking, Heartbreaking, Transformative

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