Descrição de chapéu Livros

Diários de André Rebouças iluminam o raro capitalista negro da elite no século 19

Livro organizado por Hebe Mattos relata o cotidiano do abolicionista rico, às vezes resvalando em uma agenda árida

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Gabriel Rocha Gaspar
São Paulo

O primeiro volume de "O Engenheiro Abolicionista" é um rigoroso trabalho de arqueologia que, ao reproduzir os diários escritos pelo engenheiro André Rebouças de 1883 a 1884, abre uma janela de quase intimidade para um momento de esperança na luta abolicionista do século 19.

O engenheiro André Rebouças, que tem seus diários organizados e editados pela Chão
O engenheiro André Rebouças, que tem seus diários organizados e editados pela Chão - Museu Afro Brasil

É o olhar de um capitalista negro, da elite socioeconômica brasileira, com trânsito nos altos círculos não apenas da política e da indústria imperiais, mas da alta burguesia europeia; um empresário liberal, convicto da incompatibilidade estrutural entre a arcaica escravidão e o capitalismo moderno.

Mas por que quase intimidade? É que, neste primeiro volume, o engenheiro se sobrepõe ao abolicionista. E seu relato cotidiano resvala na monotonia de uma agenda, apesar da quantidade e da relevância dos fatos narrados.

Como conta a organizadora Hebe Mattos, historiadora e professora da Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais, a ideia do volume é destacar um período pouco conhecido da trajetória de Rebouças —a retomada pós-falência.

"As pessoas gostam de o associar ao capitalismo nacional ou o retratar como amigo do imperador; não conseguem entender sua situação de classe porque as pessoas negras livres são apagadas. E esse silenciamento é como o racismo o atinge."

É como se na história oficial do Brasil que, via de regra, relega o negro ao papel exclusivo e excludente de escravizado, não coubesse o sujeito versado há três gerações nos modos da elite. Quando aparece esse negro intelectual e materialmente rico, vêm junto despautérios do tipo "negro no Brasil teve escravo", lembra Mattos.

Os artigos apócrifos de Rebouças, reproduzidos ao final do livro, mostram uma estratégia de duplo discurso na defesa da causa abolicionista. Se, aos grandes capitalistas e fazendeiros com que o autor se encontra rotineiramente, o argumento contra a escravidão se centra em sua inviabilidade econômica, ao grande público o autor apela para sua imoralidade intrínseca.

Há uma certa ingenuidade em sua perspectiva, já que, como aponta a organizadora, a "modernização conviveu muito bem com a escravidão". E, já no século 19, autores notórios (Marx, principalmente) apontavam para a tendência monopolista do capitalismo –e o consequente aprofundamento da exploração sob esse sistema econômico.

Mas não deixa de ser interessante ver um exemplo tão precoce da dupla carapuça que o negro deve vestir para transitar nos altos círculos das sociedades coloniais e pós-coloniais. No caso do autor, pode haver ainda uma terceira camada. Mattos enxerga nos diários indícios —ainda que tênues— de uma possível homossexualidade de Rebouças.

Independentemente de orientação sexual, ainda hoje se exige de pessoas negras uma adaptabilidade discursiva que as permita defender a raça sem serem descartadas de espaços de poder. Rebouças é um precursor dessa tecnologia de sobrevivência.

Ao mesmo tempo, é curioso o quão ao largo de suas anotações diárias passa o escravizado. Diferentemente de seu camarada Luiz Gama, que convivia com cativos no cotidiano de seu ativismo judicial, Rebouças não parece ter contato com ninguém que viva sob o estalar do chicote. Nos diários, o escravizado é quase uma massa disforme, cuja exploração desenfreada trava o avanço da modernidade.

Para o André Rebouças de "alma africana", Mattos recomenda a leitura de "Cartas da África: Registro de Correspondência, 1891-1893", uma espécie de introdução à trilogia intermediada por esse primeiro "O Engenheiro Abolicionista" e finalizada com o futuro segundo volume, que compila os diários de junho de 1884 a setembro de 1885 e deve sair também pela editora Chão ainda neste ano.

Se os diários são por vezes áridos —Rebouças anota horários e posições dos astros em todas as entradas, por exemplo—, sua leitura traz à tona um tipo raramente escrutinado no Brasil imperial, o abolicionista negro rico. E, claro, suas estratégias de sobrevivência.

Não seria nada mal se alguém se arvorasse a os tomar como subsídio para um romance histórico. Fica a dica.

O Engenheiro Abolicionista: 1. Entre o Atlântico e a Mantiqueira - Diários, 1883-1884

  • Preço R$ 130 (664 págs.); R$ 78 (ebook)
  • Autoria André Rebouças
  • Editora Chão
  • Organização Hebe Mattos
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.