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Hebe Mattos

O negacionismo como erudição

Experiências de liberdade não eliminam os nexos entre escravidão e racismo

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Hebe Mattos

Historiadora e professora titular livre do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG)

A relação entre a implementação do sistema de plantação com base no trabalho de africanos escravizados nas Américas e o racismo contra africanos e seus descendentes no continente é tema clássico da historiografia da escravidão moderna.

O que nasceu primeiro, a escravidão ou o racismo? O tema é complexo, mas há consenso de que o racismo estrutural na Afro-América é consequência da escravidão atlântica. Diferentemente do que o colunista Demétrio Magnoli escreveu nesta Folha (“Uma ilusão de cor”, 8/10), caracterizar a escravidão como sistema econômico não implica descartar a importância do processo de racialização na consolidação dele.

Do ponto de vista historiográfico, não resta dúvida: a estruturação do sistema de “plantation” no século 17, quando, como escreveu Alberto da Costa e Silva, negro se tornou sinônimo de escravo, fez-se como escravidão racial. Dentro desse consenso, é antiga a discussão sobre as especificidades das sociedades de colonização ibérica. Espanha e Portugal introduziram a instituição da escravidão no continente com base na tradição ​católico-romana, o que resultou em taxas de alforria relativamente altas e na criação de hierarquias raciais entre a população livre ainda no século 16.

Isso não modifica o fato estruturante que definiu, a partir de finais do século 17, todo escravizado como negro, presumido como africano ou seu descendente. Sem dúvida, muitos indígenas escravizados foram subsumidos nessa categoria, em especial no mundo ibérico, mas não só. A experiência do racismo nas sociedades escravistas das Américas conjugou etnocídio indígena e legitimação da escravização de africanos. A associação de alguns agentes políticos e comerciais africanos aos escravizadores europeus no tráfico atlântico não impediu essa operação conceitual. A experiência de opressão racial engendrada na América seria reforçada na colonização europeia da África a partir de finais do século 19.

No Brasil, o racismo foi inscrito na própria linguagem, que definia o comércio de escravizados como tráfico “negreiro” e qualificava a maioria de livres não brancos como pessoas “de cor”. Existiam como sujeitos racializados mesmo quando conseguiam ter acesso a algum capital econômico e simbólico para lutar contra o racismo, até mesmo quando se tornavam senhores (ou senhoras) de escravos.

As vendedoras africanas que enriqueceram no comércio de rua no final do período colonial continuaram sendo chamadas “pretas minas” e eram perseguidas por usar joias. “Sinhás pretas, ‘damas mercadoras’” não são expressões de época. Foram título da tese de titular de Sheila de Castro Faria na Universidade Federal Fluminense (UFF), em 2004, porque sublinhavam, em diálogo com o texto, a discriminação implícita na invisibilidade de sua memória.



Negacionismos históricos veiculados como erudição precisam ser combatidos. Experiências negras de liberdade não eliminam os nexos entre escravidão e racismo. No Império escravista do Brasil, como na república escravista dos Estados Unidos, pessoas negras e livres foram não poucas vezes escravizadas ilegalmente. Após a abolição, tendeu-se a apagar sua memória ou a lembrá-las seletivamente como estratégia para negar o inegável —a experiência de opressão racial.

Racismo estrutural tem história. E ela é inseparável do entendimento da escravidão moderna como sistema econômico.

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