Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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De Zumbi a Rebouças, os marcos de nossa resistência negra

'Guerra contra Palmares' e 'Cartas da África' iluminam temas urgentes para a sociedade brasileira

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A Chão editora, numa única fornada, publicou dois livros muito interessantíssimos. O primeiro deles é "Guerra contra Palmares - O Manuscrito de 1678", com organização dos pesquisadores Silvia Hunold Lara e Phablo Roberto Marchis Fachin. É um levantamento bastante completo sobre a maior, a mais corajosa e longeva comunidade negra nas Américas, o Quilombo dos Palmares.

O segundo, sob a orientação da professora Hebe Mattos, e que também não deixa qualquer margem de dúvida quanto a sua importância, é "Cartas da África - Registro de Correspondência (1891-1893)", de autoria de André Rebouças, certamente um dos maiores intelectuais negros do século 19. Esta obra nos remete a um André Rebouças ainda bastante desconhecido entre nós. Daí a emergência de sua leitura.

No caso de "Guerra contra Palmares", o livro não só reúne vasta e preciosa documentação, rica de detalhes, informações e dados históricos, como contextualiza com convincente precisão a história da nossa Troia Negra, esse estoico povoamento de cunho republicano que habita o imaginário brasileiro desde a morte de Zumbi, em 20 de novembro de 1695.

Historiadora de vasto currículo em estudos sobre os primórdios do escravismo brasileiro, tendo atuado na banca de defesa da tese "A Ocupação das Terras dos Palmares de Pernambuco (Séculos 17 e 18)", de Felipe de Aguiar Damasceno, em 2018, Silvia Lara nos traz um livro revelador e, com Phabo Fachin, nos apresenta a história de Palmares olhada pela lente de dois competentes pesquisadores contemporâneos.

Silvia Lara, por exemplo, com a colaboração de Fachin, recolheu da Torre de Tombo, rico arquivo documental português, o original do manuscrito "Relação da Ruína dos Palmares" (título atribuído por eles), de 1678, revelando sua autoria até então desconhecida, com todo o acerto, ao padre Antônio da Silva, então vigário do Recife.

Na fatídica e sangrenta batalha militar relatada no documento, dá-se a entender que um Zumbi menino teria sido capturado pelas forças invasoras. —"Cativaram o Aca Iuba com dois filhos do rei, um macho chamado Zambi [Zumbi, conforme grafia da época, grifo meu] e outro por nome Aca Irene, entre netos e sobrinhos do mesmo rei que se cativaram seriam vinte"—, de acordo com o relato, escrito há 345 anos.

Grupo em círculo em volta de árvore considerada sagrada no Parque Memorial Quilombo dos Palmares
Pessoas em volta de árvore considerada sagrada no Parque Memorial Quilombo dos Palmares - Heitor Salatiel

Esse documento nunca tinha sido divulgado totalmente nessa íntegra, a não ser em versões resumidas ou mutiladas, assim como o nome do seu verdadeiro autor.

O livro, organizado com notas explicativas, cartas, relatos, relatórios e demais documentos da época, muitos considerados inéditos, é um achado precioso para quem estuda Palmares ou a saga de Zumbi.

Já "Cartas da África", do engenheiro e abolicionista André Rebouças (1838-1898), é outra surpresa editorial importante e reveladora. Hebe Mattos, que está como organizadora do volume, nos traz uma personalidade múltipla dentro do seu universo de riqueza: os documentos enfeixados nessa obra contam parte das andanças de Rebouças no exterior, logo depois que deixou o Brasil, acompanhado do imperador dom Pedro 2° e sua família, expulsos do país após o golpe que passou à história como a Proclamação da República.

Focado, meticuloso e muito organizado em tudo o que sempre fez, André Rebouças copiou à mão em um "caderno de correspondências" cartas e procurações que destinou a 26 personalidades do seu universo cultural e político, entre os quais Joaquim Nabuco e Visconde de Taunay, assim como fez referências a nomes de gente amiga, como dom Pedro 2°, "pacificador e libertador", e o compadre José do Patrocínio, além de desafetos políticos, sobretudo do período republicano.

Retrato de André Rebouças que está no Museu Histórico Nacional - Folhapress

A carta de abertura do livro, datada de outubro de 1891, escrita de Cannes, na França, talvez seja a que mais bem retrata o espírito do "feroz abolicionista", como ele mesmo se denominou, ou do "negro André", como certamente muitas vezes foi tratado pela elite branca e escravista.

O Rebouças jornalista e escritor, sobretudo de ensaios mais técnicos, editados na Revista de Engenharia, suplantou o poeta dos "idílios africanos", do jornal Cidade do Rio, e o lírico prosador. Perto de sua morte, publicou longo conto, "O Romance de uma Onça", na revista A Mensageira, de São Paulo.

Destaco também o belo ensaio "Ulisses Africano: Modernidade e Dupla Consciência no Atlântico Sul", de autoria de Hebe Mattos, e a cronologia de vida e obra que atualiza a existência de André Rebouças do seu nascimento até a morte, ocorrida em Funchal, capital da ilha da Madeira, em Portugal, onde ele vivia desde 1893, conforme carta de julho daquele ano.

O jornal local "Correio de Funchal" noticia o falecimento na edição do dia 9 de maio de 1898, mesmo dia em que o corpo foi encontrado, junto ao hotel onde morava, dando a entender que Rebouças tenha cometido suicídio, já que "apresentava desde há tempos sinais de transtorno intelectual", supondo-se que "ele próprio tenha se atirado ao mar".

No entanto, a imprensa brasileira logo descartou tal hipótese e o corpo foi traslado para o Brasil, onde recebeu inúmeras homenagens.

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