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Artes Cênicas

'Realpolitik' reflete sobre a desumanidade do capitalismo com louvor

Além da competência artística, peça tem como mérito fazer o público debater, já na saída da sessão, os temas de seu texto

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Realpolitik

Os méritos de um espetáculo como "Realpolitik" se medem rapidamente, logo no fim da sessão, quando, na lenta caminhada em direção à saída, escuta-se o público já a debater o assunto da peça.

No lugar de comentários sobre a encenação, sobre o espaço não usual do espetáculo —uma sala de reuniões em um edifício na avenida Faria Lima— ou sobre a qualidade dos atores, era possível ouvir pessoas falando dos crimes da mineração no Brasil ou se questionando sobre os limites éticos da ação incendiária de um dos personagens.

Cena da peça 'Realpolitik'
Cena da peça 'Realpolitik' - Raissa Nashla/Raissa Nashla

A capacidade de provocar o raciocínio, de pensar na cabeça do público, é uma força do trabalho. Força conquistada, aqui, de um modo simples e objetivo.

Em um espaço quase vazio, sem refletores ou outros elementos teatrais, dois atores representam uma situação limite entre o CEO de uma grande mineradora responsável pela ruptura de uma barragem, que causou várias mortes, e um jornalista, ou ex-jornalista, prestes a realizar um ato terrorista exemplar contra aquela corporação.

O encontro tenso é o que dispara uma série de debates existencialistas sobre responsabilidade e alcance de ações individuais diante da "máquina do mundo".

Seria o CEO da fictícia empresa um vilão cínico ou apenas uma engrenagem substituível de uma estrutura que o ultrapassa? Há culpados individuais no rompimento de uma barragem? Ou é uma tragédia gerada pela dinâmica selvagem intrínseca ao mundo corporativo? E o que pode uma pessoa inconformada fazer sozinha diante de tal sistema desumanizador?

Mas se a peça agita muito bem o pensamento, ela também se mantém presa numa contradição estrutural que limita o desenvolvimento reflexivo dos temas em toda sua complexidade.

As perguntas movimentadas pelos diálogos entre os dois personagens ensaiam debates sobre questões sociais do mundo atual, mas a estrutura dialogada da peça faz com que os assuntos muitas vezes se transformem apenas em um tipo de "contexto" para dilemas particulares, conflitos individuais ou para a manifestação de idiossincrasias específicas daquelas figuras.

Pode-se dizer que o espetáculo "Realpolitik" é um drama de confinamento, uma forma que paralisa o tempo exterior e obriga as personagens a dialogar num espaço isolado, como numa bola de vidro. Nas palavras de um importante crítico cultural dos anos 1960, o confinamento é "uma muralha contra a épica do mundo".

Isso porque o que tende a ficar mesmo em evidência neste tubo de ensaio artificialmente controlado são os tumultos íntimos das personagens, as idas e vindas de suas indecisões particulares. Pouco a pouco, tal interiorização dos temas sociais vai diluindo os assuntos até que eles pareçam apenas um pano de fundo para uma situação dramática eletrizante envolvendo um terrorista e um empresário.

Ao mesmo tempo em que "Realpolitik" mobiliza, com notável competência artística, excelentes debates sobre os arranjos e desarranjos sociais do mundo em que vivemos, também há ali um tipo de trava estrutural, que impede a reflexão de ir além e de olhar mais a fundo, nos olhos, o mecanismo organizado de desumanidade que se tornou o capitalismo contemporâneo.

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