Descrição de chapéu Livros a feira do livro

Entrar na ABL nunca foi sonho, diz Martinho da Vila, que disputou sem levar voto

Sambista que participou da Feira do Livro neste sábado, em São Paulo, concorreu à Academia Brasileira de Letras em 2010

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São Paulo

"Nunca pensei muito nisso, não", disse o sambista e escritor Martinho da Vila quando ouviu uma pergunta da mediadora Adriana Couto sobre entrar na Academia Brasileira de Letras, a um público de centenas de pessoas aglomeradas num fim de sábado frio na Feira do Livro, em São Paulo.

"Concorri uma vez, uns segmentos do movimento negro vieram e falaram que a ABL tinha sido fundada pelo Machado de Assis e só tinha um negro. Eu concorri, mas não recebi nenhum voto", contou, em meio a gargalhadas.

O músico e compositor brasileiro Martinho da Vila durante sua fala no primeiro dia da Feira do Livro, que acontece na praça Charles Miller, região central da cidade de São Paulo neste sábado (29) - Ettore Chiereguini/Folhapress

O episódio foi em 2010, e o eleito foi o diplomata Geraldo Cavalcanti —também concorreram e perderam o ex-ministro Eros Grau e o filósofo Muniz Sodré, que foram mais votados que Martinho.

"Agora também não pretendo concorrer mais", continuou. "Você tem que primeiro frequentar a Academia, ir lá ver palestras, torcer para ser convidado no chazinho das cinco. Descobri que não adianta concorrer, a diretoria se reúne, uns quatro ou cinco escolhem um candidato e resolvem qual será. Vai ser o afilhado de quem dessa vez?"

"Se vier é bom, é uma honraria, mas não é um sonho, um sentido de vida, é uma coisa vaidosa. Meu sentido é ser referência para jovens da minha origem", arrematou.

O público no Pacaembu se alegrou quando o cantor entoou por alguns minutos um samba seu que homenageava justamente o fundador daquela casa centenária.

"Comecei a me interessar mais pelos livros por causa de um samba-enredo sobre a epopeia de Machado de Assis. Fui pesquisar sobre ele na biblioteca. Achava que era branco, mas todo negro que se destacava era embranquecido."

A conversa passeou pelas mais diversas lembranças da carreira do compositor, que lançou há pouco pela Planeta o livro "Martinho da Vida", uma espécie de autoficção em que dois homens batem papo num "diálogo-monólogo", como ele define.

"São dois personagens, o Da Vila, que sou eu, e o Zé Ferreira, que sou eu também", brincou o escritor de 86 anos. "Um tem dúvidas sobre palco, música, e o outro tem curiosidade sobre a vida do outro, a família, por onde andou."

Nessas andanças o compositor sobrevoou seu tempo no Exército, viagens a Angola e histórias afetuosas de seu começo de carreira.

Numa das mais saborosas, lembrou que sua mãe não gostou nada quando ouviu seu samba seminal "Casa de Bamba" apresentado no Festival da TV Record, em 1968. Ele contou que a casa de sua família "não era muito" de bamba.

"Cheguei em casa para minha mãe, ‘viu o filhão lá, gostou?’, e ela disse que achou a do ano anterior melhor", relembrou em referência à mais comportada canção "Menina Moça".

"Agora essa a música é mentirosa, é mentira sua, eu bebo por acaso, aqui se fala macumba?", retrucou a mãe do cantor, indignada. "Ela era muito religiosa e achou que iam pensar mal da nossa família."

O cantor celebrou a união do samba com a literatura e reafirmou que sua maior vontade é mostrar a jovens negros que eles podem chegar ao lugar que quiserem. "Todo mundo pode criar música. De Martinho da Vila está cheio pelo Brasil afora."

homem fala ao microfone
O autor Stênio Gardel durante sua fala no primeiro dia da Feira do Livro, que acontece na praça Charles Miller, região central da cidade de São Paulo - Ettore Chiereguini/Folhapress

Em debate no mesmo palco algumas horas depois, o romanista Stênio Gardel contou como oficinas de escrita criativa ajudaram a destravar o romance "A Palavra que Resta", premiado com o National Book Award, nos Estados Unidos.

Na noite do sábado, ele afirmou ter cultivado o desejo de escrever por muito tempo até de fato conseguir chegar a um livro, num encontro mediado pelo editor e crítico literário Schneider Carpeggiani.

Para Gardel, o ponto de virada foi o curso de escrita criativa oferecido por Socorro Acioli, autora de "A Cabeça do Santo"e outras obras. "O encontro com ela foi definitivo, não apenas as aulas, foi uma virada de página na minha própria história", contou. "Eu já tinha vontade de escrever há muito tempo, estava se tornando uma angústia. Nunca me dedicava para valer."

Gardel lembrou como acumulava rascunhos de livros inacabados ou contos que não trazia a público. O curso, disse, foi uma oportunidade de aprender não só técnicas literárias, mas também formas de ler obras de um jeito mais atento a aspectos construtivos. Além disso, a oportunidade de expor textos a colegas também foi um aprendizado.

"Não tem como um livro sair da cabeça do autor para a mão do leitor sem passar por outras pessoas, o que implica estar aberto a julgamentos. E isso foi um passo muito importante", disse. "O que eu buscava com mais ânsia era saber se aquilo que eu estava escrevendo era literatura."

Carpeggiani apontou como os leitores de "A Palavra que Resta" costumam se referir aos personagens como pessoas conhecidas e pediu então que Gardel explicasse como funciona seu processo criativo nesse ponto.

"Tento racionalizar, mas parte do processo é meio indecifrável. E isso é bonito. Não quero ter controle total da criação, do que acontece depois com o livro ou dos significados que estão nele", afirmou o autor. "Tudo começou com a imagem dessas pessoas. E a imagem fictícia de um homem senta a uma mesa, que tem algo importante para ler e não consegue."

Em "A Palavra que Resta", um homem se alfabetiza já idoso por meio de uma carta deixada por um amor do passado —um outro homem que sumiu sem deixar pistas quando a paixão dos dois foi descoberta.

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