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'A Filha do Pescador' tematiza o corpo trans com elenco genuíno

Estreia na direção do colombiano Edgar De Luque Jácome traz a história de uma filha que tenta se reconectar com o pai

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A Filha do Pescador

  • Classificação 14 anos
  • Elenco Modesto Lacen, Henry Barrios, Jesús Romero
  • Produção Brasil, Colômbia, Porto Rico, República Dominicana, 2023
  • Direção Edgar Alberto Deluque Jacome

Por mais de um século, a transexualidade foi um tema praticamente ignorado pelo cinema —e quando surgia, era de forma incompleta ou estereotipada. De alguns anos para cá, vários cineastas decidiram correr atrás do tempo perdido, e da falta de representação quase total, repentinamente houve uma explosão de tramas povoadas por personagens trans.

Cena do filme 'A Filha do Pescador', de Edgar de Luque Jácome
Cena do filme 'A Filha do Pescador', de Edgar de Luque Jácome - Divulgação

"A Filha do Pescador", estreia na direção do colombiano Edgar De Luque Jácome, traz a história de Priscila, uma mulher transgênero que rompeu relações com o pai, mas que volta a procurá-lo.

O filme refuta a vertente do "lacre" ou da politização extrema dos corpos trans —é como se fugisse do tom professoral de parte expressiva dos longas recentes sobre o tema, e opta por uma obra menos combativa, mais passível de diálogo com um público não muito iniciado no assunto. Ainda que, em nome disso, recaia em um resultado estético reduzido.

O longa se passa em uma ilha caribenha onde Samuel vive da pesca marinha, praticamente isolado. Há vários anos, seu filho, descontente com o próprio gênero, e sua mulher, infeliz no casamento, resolveram abandoná-lo, indo tentar a vida na cidade grande. Anos mais tarde, depois da morte da mãe, Priscila retorna à ilha após se meter em uma confusão com a polícia.

Priscila busca abrigo na casa paterna, mas o conservador Samuel não tem nenhum entusiasmo ao recebê-la. Até aceita que ela fique ali por uns tempos, mas desde que não se maquie, que corte os cabelos e que fique trancada em casa quando seus companheiros de pesca aparecerem por ali.

O roteiro tem fragilidades evidentes —não é uma ideia das mais brilhantes buscar esconderijo na casa do pai quando se está sendo procurado pela polícia, por exemplo. E toda a parte envolvendo o assédio de um dos pescadores a Priscila é um equívoco. Mas o esquematismo sobre o qual tudo se estrutura é o que de fato incomoda.

Não é preciso ser nenhum Nostradamus para adivinhar o que acontecerá na sequência —em dez minutos de filme já é possível intuir todo o percurso dramático pelo qual pai e filha passariam. Com um pouquinho de empenho, o espectador não teria sequer dificuldades de visualizar mentalmente a última cena, que acontece diante do mar, é claro.

Não se questiona aqui a relevância do tema e de se apresentar um retrato afirmativo trans, mas qual o sentido de se fazer um longa tão previsível e carente de novidades? Talvez a única informação surpreendente seja uma triste explicação para as cicatrizes nos pulsos de Priscila, que a princípio parecem sugerir tentativas de suicídio.

Mas felizmente o longa tem um outro elemento que o impede de ser um produto completamente sem identidade própria: o elenco. Não parecem atores profissionais, mas o desnível de registros acaba dando uma curiosa contribuição positiva para o filme.

Nathalia Rincón tem precisão em seus gestos, falas e olhares, e compõe uma Priscila que assegura voltagem às cenas. Já Roamir Pineda, intérprete de Samuel, fala sempre em um ou dois tons acima que os demais atores, como se estivesse prestes a berrar –seja quando está com raiva da filha ou quando alguém se mete a lhe ensinar algo sobre o seu ofício de pescador.

É uma "inadequação" de performance que enriquece o personagem, porque sua gritaria parece surgir como uma resposta sempre genuína, e não ensaiada, de um homem que se tornou quase um eremita e que já não tem muita paciência com os demais —e que carrega uma enorme amargura pelos abandonos que sofreu.

O grande destaque, porém, é Roosevelt Rafael González, no papel do tio de Priscila, um homem bronco, mas com o coração de ouro –seu cérebro certamente não entende muito bem as motivações da sobrinha, mas algo dentro de seu peito o faz acolhê-la, sem maiores questionamentos.

Quando ele intercede por ela diante de Samuel, o faz com um semblante sério, de alguém que quer passar firmeza, mas existe uma indisfarçável doçura naquele pescador –há uma camada extra de comicidade e de afeição nesse jeito de atuar que tornam o personagem o mais carismático do filme. O trio ajuda a tornar o longa cativante, apesar de suas limitações.

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