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'Divertida Mente 2' perde no humor debochado ao optar pelo didatismo

Filme tem seu méritos, mas erra ao recuperar a autoestima da protagonista a partir da insistência em afirmar suas qualidades

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Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

Chega ao cinema "Divertida Mente 2", a continuação do filme que encantou famílias inteiras ao abordar o que se passaria na cabecinha de uma criança nos primeiros anos de vida. Com a chegada da puberdade, os personagens recebem novos integrantes que bagunçam o coreto.

A animação se tornou, nesta semana, o filme mais visto nos cinemas brasileiros em todos os tempos, com mais de 20 milhões de espectadores.

Cena de 'Divertida Mente 2' - Divulgação/PIXAR

Não precisa ser psicanalista para reconhecer que transformações anatomo-fisiológicas decorrentes da produção dos hormônios secundários criam novos desafios psíquicos. No entanto, é de fazer Freud virar na tumba supor que, antes dessa fase, se viveria sem grandes percalços subjetivos, sem angústia ou traumas.

Não é de hoje que os psicanalistas tentam demover os pais da fantasia de que seria possível proteger as crianças de todo e qualquer sofrimento. Há o sofrimento decorrente do simples fato de sermos seres autoconscientes e ele não depende de que algo contingencialmente disruptivo aconteça na vida da criança.

Lembremos que, no primeiro filme, Riley está lidando com uma mudança de cidade e todas as separações e perdas decorrentes. Esse acontecimento é usado como justificativa para o sofrimento dela e razão para que o conflito entre as emoções faça algum sentido.

Essa idealização da infância custa caro aos pequenos por impedir que encontrem lugares de acolhimento e nomeação dos seus anseios. Quem nunca ouviu um pai ou uma mãe dizer que a criança não tem direito de sofrer porque ela tem tudo?

Ou, ainda, pais e mães que buscam incessantemente diagnósticos de patologias mentais como resposta para a sensação de estarem fracassando. Na verdade, trata-se de tentar remediar a ilusão de infância idílica que se propuseram a sustentar.

Em "Divertida Mente 2", o erro se repete e Riley vira a chave da infância idílica do dia para a noite, entrando na puberdade como se a existência em si não fosse uma encrenca. Sexualidade e morte nos assombram e impulsionam desde sempre, como Sigmund Freud revelou, chocando desde vitorianos até pós-modernos.

O filme também gerou muita controvérsia sobre as relações entre as emoções, como elas se combinam e de onde derivam, pois o roteiro padece da ânsia de explicar tudo da forma mais eclética e sistemática possível. Ao optar pelo didatismo, algo do humor debochado presente em outras animações se perde. Esqueça as gargalhadas de um "Shrek", da "Era do Gelo" ou de "Enrolados" por exemplo. Aqui o papo é cabeça.

Mas o filme tem méritos, e há cenas que nos atingem em cheio, como aquelas que mostram as inseguranças da pré-adolescente e seu sofrimento. Além disso, mesmo que a partir de uma miscelânea de teorias psicológicas, pautar afetos abre espaço para mais do que as interpretações moleculares e patologizantes do comportamento infantil que hoje estão em voga.

O que mais chama a atenção, no entanto, é que todo o trabalho de recuperação da autoestima da personagem se dá a partir da insistência em afirmar suas qualidades, ou seja, em convencê-la do fato de que ela é uma boa aluna, boa jogadora, boa amiga, e por ai vai. E ela é tudo isso. Mas se não fosse? Precisa ser tudo isso para merecer esse amor?

Nada é mais danoso para a criança do que a necessidade cumprir uma lista de ideais sociais para ter direito ao amor. Neste ponto, o ranço "winners-losers", ou vencedores-perdedores que empesteia o imaginário americano é jogado na cara do espectador sem a menor crítica. E como o brasileiro importa a mentalidade de lá, fica a dica para os pais questionarem o que seus filhos precisam ser para merecerem seu amor, deles e de si mesmos.

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e "Manifesto antimaternalista". É doutora em psicologia pela USP

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