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Gustavo Zeitel

Com breakdance, Paris sedia os primeiros Jogos Olímpicos do século 21

Abertura do evento espelhou princípios do estilo de dança urbana, como a criação de uma outra temporalidade

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Gustavo Zeitel
Gustavo Zeitel

Repórter da Ilustrada, é formado em jornalismo pela PUC-Rio

É curioso ler em "O Som e o Sentido", livro sobre teoria musical escrito nos anos 1980 por José Miguel Wisnik, uma menção, no último capítulo, ao breakdance. O autor observa que o estilo de dança simula um tempo distinto do relógio. O breakdancer vai para trás como se andasse para frente. Wisnik recorre, então, a uma imagem para explicitar o seu pensamento. Ele vê o corpo como uma tela, estimulada por um impulso eletrônico contínuo e quebrado.

Atleta afegã Manizha Talash, do time de refugiados, treinando para as Olimpíadas de Paris - Violeta Santos Moura/Reuters

Ainda que a dança engendre uma geometria no espaço cênico, o tempo é uma variável indispensável para o artista executar a sua coreografia, tanto mais quando ouve, ao fundo, uma música. Pelo raciocínio de Wisnik, a "história das danças é uma dança das horas". No balé, o pas-de-deux, no segundo ato de "La Sylphide", exige que bailarino e bailarina façam todos os passos em sincronia, conforme a progressão do tempo cronológico. Já a valsa, uma dança de salão praticada nas cortes europeias, só existe se imitar o funcionamento de um pêndulo.

Ao ser incluída nas Olimpíadas de Paris como nova modalidade, o breaking causou, no esporte, o mesmo desarranjo que provocou na história da dança. Nos anos 1970, o breaking surgiu nos subúrbios de Nova York como um dos pilares da cultura hip hop, ao lado do grafite e do rap. Era praticado, sobretudo, por jovens negros, num contexto de crise econômica nos Estados Unidos, como uma revolta contra o racismo e a decorrente marginalização territorial.

O breakdance se inseriu no território vasto da dança contemporânea, por compartilhar algumas de suas características, mas também a revolucionou ao incluir o corpo negro como protagonista dos movimentos. Era uma expressão libertária em um lugar vacante a que essa população estava confinada: a rua. As danças urbanas retiraram a arte das salas de teatro, com uma prática realizada no espaço público, local instável, sujeito a toda sorte de intempéries.

O breaking olímpico suscitou diferentes reações. A mais previsível era a dúvida se um estilo de dança configuraria, de fato, um esporte. Ora, a resposta negativa excluiria, por lógica, a ginástica rítmica e o salto ornamental.

Todo esporte tem uma dimensão artística que, em geral, se concretiza no trabalho escultórico do corpo. Por exemplo, a natação se esmera na beleza plástica. Na piscina, o corpo do atleta se espicha, os braços e as pernas abalam a placidez da água, um azul pacificador, que contrasta com a emoção das provas de velocidade.

Para as competições da próxima semana, o Comitê Olímpico Internacional, o COI, impôs algumas mudanças ao breakdancing. Uma delas é a proibição de qualquer palavrão na música, uma limpeza promovida pelo espírito olímpico, sentimento que oscila entre o humanismo e a chatice.

Alguns adeptos da modalidade alegam, porém, que a institucionalização do breaking pode significar seu embranquecimento. A argumentação se mostra limitada. A alternativa seria restringir às Olimpíadas a modalidades elitizadas, como o tênis, o hipismo e a esgrima.

O breakdance é o fundamento das Olimpíadas de Paris. Há pouco mais de uma semana, o contratenor polonês Jakub Josef Orlinski, uma estrela mundial da ópera, surgiu num telhado, na capital francesa, interpretando uma ária de "Les Indes Galantes", obra barroca de Rameau. Vestido como um personagem da commedia de ll’arte, ele executava passos de breaking, um contraste com a arte lírica e seu timbre assexuado.

Os princípios dessa nova modalidade olímpica nortearam a cerimônia abertura, idealizada pelo diretor Thomas Jolly. De modo análogo a esse estilo de dança, o cenário ali era o espaço público, sendo a intempérie, na ocasião, a chuva que caía na cidade. A audiência da TV foi transportada a outra temporalidade, indo e vindo até os diferentes pontos das margens do rio Sena.

Jolly abandonou o estádio, cujo centro pode ser identificado à primeira vista, para criar um espetáculo descentrado e simultâneo, como as várias modalidades que dividem as telas, durante as transmissões. No século 21, tudo está em todo lugar ao mesmo tempo.

A exemplo do breaking, Paris encenou uma dança em que todos os corpos podiam participar. À mesa de Baco, homossexuais, transsexuais e imigrantes podiam se embriagar de prazer. A festa foi barulhenta, simbolizou o contraste, novamente, entre o passado e o novo, numa afirmação progressista da França.

Nesse sentido, o breaking imprimiu à cerimônia um caráter contemporâneo, adjetivo repetido à exaustão, mas pouco compreendido pelas pessoas.

O filósofo italiano Giorgio Agamben refletiu sobre o tema no célebre ensaio "O que é o Contemporâneo?". Para responder à pergunta, pensou em algumas imagens. "Contemporâneo é aquele que recebe em pleno o rosto o facho das trevas que provém do seu tempo", escreveu. O indivíduo do presente, mas se afasta dele para se compreender, num certo anacronismo.

Agamben enxerga o século 21 como uma "vértebra fraturada". "Break", afinal, significa "romper" em inglês. Numa dança que desorganiza o tempo e o espaço, a cerimônia de abertura foi além de um "succès de scandale". Não à toa, continuou a ser debatida mesmo depois da primeira semana de competições.

Jolly provocou inveja ao exibir a bilhões de pessoas a potência cultural francesa, sustentáculo da civilização ocidental, e suscitou a ira reacionária ao escancarar, num jogo entre o passado e o presente, a realidade de seu país. Por fim, consolidou os Jogos de 2024 como a primeira edição contemporânea. A humanidade, enfim, chegou às Olimpíadas do século 21. E isso, claro, tinha de acontecer em Paris.

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