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'Zé' revê a esquerda no regime militar com originalidade e leveza

Filme de Rafael Conde remete a Bresson e Tonacci em trama que recupera história do militante José Carlos da Mata Machado

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  • Quando Em cartaz nos cinemas
  • Classificação 12 anos
  • Elenco Caio Horowicz, Eduarda Fernandes, Yara de Novaes
  • Produção Brasil, 2023
  • Direção Rafael Conde

A primeira coisa que chama a atenção em "Zé" é a maneira como Rafael Conde se esquiva de certas armadilhas que com frequência atingem os filmes políticos. Logo de início, o que vemos são estudantes que picham paredes com palavras de ordem contra a ditadura e fogem da polícia nas passeatas.

O tom é mais ou menos o de um filme de nouvelle vague: a leveza com que os acontecimentos são filmados (e encarados pelos personagens) não remetem a coisas como luta revolucionária ou algo assim. Essas coisas faziam parte da formação dos jovens dos anos 1960.

Cena do filme 'Zé', de Rafael Conde
Cena do filme 'Zé', de Rafael Conde - Divulgação

E Conde capta alguns signos muito marcantes, como o mimeógrafo, que mal vemos, um instrumento que hoje mal faria sentido numa era de redes sociais. Mas era através dele que se difundiam as ideias.

Outro aspecto marcante —o filme se abre com um discurso do pai do protagonista, o Zé do título, que em tudo lembra o "Blá-Blá-Blá" de Andrea Tonacci. Aqui, trata-se de mostrar o momento em que as palavras soam vazias (e no caso quem fala é um professor de direito), perdem o sentido. O momento da ditadura, em suma.

É na militância estudantil que Zé (Caio Horowicz) encontra Bete (Eduarda Fernandes), que será sua companheira, e que não hesita em tirar o sutiã quando os dois conversam num parque de Belo Horizonte. Ali começa o namoro, e não falta capacidade de síntese ao filme para mostrar um pouco do amor da época —numa cena mineiramente pudica, a um tempo discreta e clara.

A leveza do momento é também evidente. O casal concilia filhos, ação política e trabalho. O filme é feliz ao omitir certas passagens da vida de seu personagem, como a prisão no famoso congresso da UNE de Ibiúna —uma elipse que, como outras, centra o filme na vida cheia de solavancos do casal e os aproxima da vida com a família.

O fato é que o personagem, José Carlos da Mata Machado, foi um importante líder do movimento estudantil mineiro, e militava na Ação Popular (AP), organização que se originou da ala progressista da Igreja Católica. O filme, no entanto, vai em busca de um Zé, quer dizer, busca mostra-lo como qualquer militante anônimo.

O segundo viés do filme parece vir de Robert Bresson. A interpretação retraída, quase mecânica, nos distancia do realismo tradicional e evita a dramatização excessiva, outra armadilha que ronda os filmes políticos que tratem de momentos críticos, ao mesmo tempo em que permite a "Zé" desenvolver uma história de amor em que o tom é dado pela perfeita inocência do casal (o que lembra um pouco a história do "O Batedor de Carteiras" de Bresson), muito mais do que pelo eventual heroísmo dos protagonistas.

Num primeiro momento, aliás, nem existe heroísmo. Algo de burlesco se insinua nas panfletagens feitas por jovens pequeno-burgueses entre operários, como se pudessem ensinar-lhes a ser proletários conscientes, esse tipo de ilusão que frequentou a trajetória de muitos estudantes da época.

A vida familiar, os pais de José Carlos, o advogado, figuras de um modo ou de outro essenciais naquele momento, darão lugar aos colegas de militância, na medida em que a luta estudantil, idealista e suave, transforma-se em combate de morte contra um regime que se torna muito mais ditatorial à medida que o movimento estudantil passa a ser absorvido pela guerrilha (ou na guerrilha).

O filme tem a boa ideia de introduzir um cunhado (irmão de Bete), personagem dotado de certa ambiguidade e a respeito de quem sempre indagaremos se é um delator ou não.

Assim como evita a interpretação convencionalmente realista, "Zé" também se esquiva das cenas de tortura que costumam frequentar a mente dos cineastas que tratam do período. Não será um "spoiler" dizer que Mata Machado morreu na tortura. Não é em torno de sua morte que gira o filme, mas de sua vida. Não de seu final, mas de seus sonhos, objetivos, trajetória, fracassos e conquistas.

Mais amplamente, e não sem originalidade, o filme busca, e em boa parte consegue, fazer através de sua personagem a autópsia desse momento da esquerda brasileira, tomando por centro o movimento de resistência à ditadura mais do que a ação da ditadura, como se vê com mais frequência.

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