Um sonho de sexo envolvendo Mira Schendel e Alexandre Frota

Em livros e conversas, autores fazem reflexões oníricas sobre a liberdade na cultura

Tales Ab'Sáber Tiago Ferro

[RESUMO]  Os seguintes escritos são relatos de sonhos e uma conversa sobre sonhos que se deu entre os autores. Eles apareceram originalmente em dois livros, em um post no Facebook e em comunicados entre os sonhadores, no messenger da mesma rede. A artista plástica suíça Mira Schendel (1919-1988) e o ex-ator pornô, eleito para a Câmara dos Deputados no domingo (7), representariam forças opostas no debate que envolve a liberdade na cultura.

 

Tales Ab’Sáber, "Ensaio, Fragmento", 2014

Crueldade do inconsciente, com grande rigor. Por trás do sonho estão: a exposição de uma de nossas artistas blockbusters do dinheiro global que vi em um novo museu, fora do Brasil, onde também vi os pequenos documentários de autoexibição da própria vida sexual de Tracey Emin: “Dentro de um shopping center foi construído um museu, destes transparentes e modernos. Eu, meio criança, tentava ver, mas não conseguia, a última obra de arte da moda da época: um filme de fragmentos de sexo explícito, com cenas de sexo entre Mira Schendel e Alexandre Frota”.

Tales Ab’Sáber, "Michel Temer e o Fascismo Comum", 2018

Em algum momento entre o ano de 2012 e 2013 sonhei o seguinte sonho, que foi anotado em algum dos apontamentos de meu livro "Ensaio, fragmento":

 “‘Dentro de um shopping center havia acabado de ser construído um museu, destes transparentes e modernos. Eu, meio criança, tentava ver, mas não conseguia, a última obra de arte da moda da época: um filme de fragmentos de sexo explícito, com cenas entre Mira Schendel e Alexandre Frota.’ Por trás do sonho estão: a exposição de uma artista brasileira blockbuster, que vi em um novo museu fora do Brasil, onde também vi os pequenos documentários de autoexibição da vida sexual de Tracey Emin.”

Naquele momento apenas anotei o sonho e seu motivo imediato. Hoje se trata de ir mais fundo no seu sentido histórico, a sua verdadeira dimensão de self cultural.

Mira Schendel é para mim a força de um impulso criador, que envolvia toda a possibilidade de pensamento de seu tempo, que punha em trabalho de arte as possibilidades rigorosas de uma cultura aberta ao novo, para mim, ao melhor e ao bom. Uma trabalhadora em profundidade da cultura, nas raízes do sentido e da linguagem, no tempo em que o próprio Brasil era sujeito de tudo, e produzia gente assim.

Uma artista que, ao mesmo tempo em que pesquisa, mantém o cuidado da própria intimidade, o recato e o senso de integração de não ser devassado pela presença da arte no mundo, que não é espetáculo, propaganda ou comércio.

Exatamente o oposto de toda ordem de invasão, vulgaridade e exibição presente no sonho de sua violação, na arte espetacular dos shopping centers. Sua obra muito fina, em que traços e fundamentos de letras, palavras, origens visuais do significante, em espaço branco, base, conceito e vazio em um único ato do artista, emergência da letra em silêncio, entre o signo e o espaço, é a delicadeza da força real, de uma cultura que trabalha, enquanto o mundo dorme, ou explode em redundância espetacular ao redor. 

O sonho ético do moderno em trabalho, e do espaço de resgate como fonte de sentido, e não reprodução do sempre o mesmo.

Entre a Suíça, e a Europa despedaçada pelas próprias intensidades e erros, do capitalismo imperialista do século 20 e seu desejo de poder e alienação para a catástrofe, destruição, que ela fazia ver como opacidade, o não brilho singular de seus primeiros quadros, e o Brasil, que representou terra virgem, não saturada, aberta para as primeiras inscrições no rarefeito, Mira contribuiu para nossa vida com afeto, singeleza e rigor, que ligavam a obra ao gesto, e o gesto à linguagem. Ao mundo.

E, também, para mim ela sempre representou o desejo de um momento moderno em que a Europa se curvou ao Brasil, o que é também uma fantasia política infantil.

Alexandre Frota, para mim, por sua vez, é o produto acabado de uma subjetividade desde sempre determinada de modo fortemente heterônomo, carregada de preconceitos claros e visíveis, que são ideologia expressa diretamente em seu estado de corpo concreto.

Elogio do corpo puro, só corpo, da força sempre disponível para o constrangimento e a agressão, seu destino objetivo na indústria da pornografia nacional é apenas a confirmação do explícito da condensação dos elementos da cultura sem dimensão do mercado total, que se adensaram plenamente nele, em seus músculos, em seu cérebro e seu pau, até se tornar a coisa em si da regressão cultural que representa tão precisamente.

Alexandre Frota é um signo cultural tão pornográfico em ação no cinema, quanto na ação comum de seu corpo que é pura matéria, sempre disposto a violência e a agressão, quando em simples repouso na cultura mais comum de seu mundo. Cultura de seu corpo em busca do fetiche, que se tornou parte dominante de nosso próprio mundo...

E o sonho, premonitório com os elementos estruturais de nosso fascismo comum, continua, como efetivo dado histórico...

Assim, no dia 29 de outubro de 2017, cerca de um ano e meio após a retirada de Dilma Rousseff do poder, Alexandre Frota estava realmente engajado em mais uma atividade do grupo político de nova direita a que aderiu satisfeito durante o processo social das manifestações contra o governo da presidente petista.

Agora, diferentemente do anticomunismo maníaco, delirante e politicamente mentiroso, revivescência arcaica nacional de um passado do pensamento político autoritário que nunca passa, que moveu a facção da direita mais apaixonada nos processos de manifestação pelo impeachment, Alexandre Frota e seu grupo estavam atacando outro objeto, novamente de modo histérico e com ameaças de passagem à violência direta: uma exposição de arte, uma performance artística, que ocorria em uma temporada, normal e comum, de exposições oficias no Museu de Arte Moderna de São Paulo.

Com seu grupo de classe média descomprometido dos destinos da cultura qualificada, dos processos de relação entre arte e crítica e de todos os parâmetros e compromissos operados pela arte contemporânea, Alexandre Frota atacava abertamente a um artista, Wagner Schwartz, atacava a instituição que o recebia e atacava os participantes da situação artística e estética proposta pelo artista. O sonho também era uma memória do futuro.

O pit boy, promotor da cultura comum da briga carioca, de baixa classe média que engajou o corpo na faceta violenta do espírito da competição do mercado, brigava agora explicitamente com a arte, com o artista e com o sistema cultural que sustenta arte e educação no mundo. O ator pornô passava ao ato, como dizem os psicanalistas, para de fato destruir e violentar o trabalho do artista.

De modo aproximado com alguns conteúdos, explícitos, de meu sonho —de Frota comendo Mira Schendel, e forçando a artista, e seu mundo, para o seu próprio mundo de violência e redução simbólica ao explícito da violência direta, assim como a própria cultura do consumo, que é a sua, do shopping center também o faz—  de três anos antes, sonhado mesmo na origem da degradação da cultura política e sua nova violência de direita no Brasil.

Frota, em conjunto com seu grupo violento, ignorante e grosseiro, dava vazão ao novo lance político, à nova posição simbólica para a violência política na cultura, dos grupos que promoveram o impeachment, que de liberais passavam a ativos promotores de violência pública em nome de um difuso e arcaizante conservadorismo, organizado como campo simbólico antiesquerda.

Após inventarem e celebrarem com rituais públicos o comunista inexistente de 2014 e 2015 na política petista, para um agenciamento do ódio como força política produtora real —de modo que o inimigo é imaginário e efetivamente falso, mas o ódio simples e concreto que constela a paranoia é efetivamente real e produtor de poder— grupos de mobilização social à direita renovavam a sua política reinventando a sua persecutoriedade e perseguição.

Após muitos e muitos anos de suspensão do direito à intervenção e ao controle da cultura, desde o auge da ditadura militar no pós AI-5 de 1968, setores da classe média brasileira autoritária, e ativos inimigos da esquerda, propunham novamente censura à arte, artistas e setores inteiros da vida da difícil democracia brasileira.

O movimento de expansão do autoritarismo ativo e violento pela cultura, em busca de uma nova inimizade fundamental e de um novo inimigo projetado no lugar do monstro —"La Bête", era o nome da performance de Wagner Schwartz atacada por Frota e pelos novos anticomunistas culturais— era uma saída brilhante para a desmobilização da política do ódio, muito importante na encenação e no engajamento da paixão na política, como um dia disse Fernando Henrique Cardoso tentando animar a direita para este novo tipo de ação, que fatalmente deveria esmaecer, perder o objeto fetiche negativo, após a derrubada consumada do último governo petista.

O inimigo comunista imaginário, que deu suporte para a política do ódio, da projeção liberada da violência, que já não existia quando das manifestações excitadas do processo do impeachment, ficou existindo ainda menos quando a esquerda democrática —e pró-capital— brasileira foi afastada do governo.

A direita do agenciamento do ódio ficava sem objeto para a própria formulação da forma de sua política, excitada, paranoica, delirante e legitimadora da violência na vida política cotidiana. Era necessário reinventar o inimigo, reanimar a lógica psico-política. Como o capital, o ódio como política não pode parar de produzir o seu próprio excedente, a política da inimizade, a invenção do inimigo civilizatório universal para o agenciamento da necropolítica dos de baixo.

Tiago Ferro, Facebook, 13 de setembro de 2018

Depois do ótimo papo ontem com Tales Ab’Sáber e Silvio Rosa Filho na Casa Plana, fiquei insone e remoendo algumas ideias sobre capitalismo global, processo histórico local, cultura e autoritarismo, a partir do livro "Michel Temer e o Fascismo Comum". Aqui vai, de forma desorganizada:

Do outro golpe (agora tem isso, né?), há um ensaio famoso escrito também no calor dos acontecimentos: “Cultura e Política 1964-1969”, do Roberto Schwarz. Ali ele fala que o golpe foi de direita mas a cultura se manteve de esquerda, apesar de terem sido cortados os vínculos entre produção cultural e movimentos sociais progressistas organizados e a cultura ter se fechado no universo burguês, ela se manteve de esquerda até 1969. Bem resumido, ok?

Meu palpite é que naquela época o capitalismo não estava na sua fase tardia, a indústria cultural não era o que é hoje e portanto ainda existiam espaços para se criticar o capitalismo de fora dele: da cultura, da natureza, da psique. 

Em um dos ensaios do Tales, ele fala de um sonho que teve: um museu dentro de um shopping onde estava passando uma vídeo-instalação no qual Alexandre Frota comia Mira Schendel.

Se não estou enganado, indústria cultural globalizada, arte como produto de shopping center, capitalismo tardio envolvendo todos os aspectos da sociedade (até os sonhos, o que dirá da cultura?), fazem desse último golpe, pensando a partir do capítulo final do livro sobre o Temer, um golpe de direita de cabo a rabo. Teoricamente sem qualquer espaço organizado para a cultura de esquerda resistir. 

Ou melhor, sim, espaços mínimos: este livro, por exemplo... E como o Tales contou durante o debate que está escrito na lápide de Marcuse: “a luta continua”.

Leiam o livro que é foda e urgente!

P.S.: projeto: ler a trilogia (Lula, Dilma e Temer) para fazer um ensaio dos ensaios. Se eu der conta, claro!

Tiago Ferro, Facebook, 16 de setembro

[ sonho ]

Era de noite. Eu estava acompanhando uma minúscula procissão numa cidadezinha do interior que chegou numa casa bem simples onde morava o Haddad. Era o dia do casamento dele e aí então já era dia. Eu me espantava com a casa muito pobre, mas com paredes coloridas, tipo pobreza filmada pela Conspiração Filmes (tirada adaptada de uma conversa com o Xico Sá). Dava vontade de morar ali.

Estavam lá outros amigos meus de mercado editorial (ok, não citarei nomes). E o Haddad era mesmo meu amigo. Ele não tocou no assunto, mas eu sabia que ele sabia que eu ia votar no Ciro. Ele me perguntou se eu ia votar mesmo no Mídia Ninja para governo do estado. Eu não fazia ideia do que ele tava falando, mas disse que sim.

Ele me olhou desconfiado e me explicou que os economistas cariocas eram todos ligados a militares. Eu me espantei que ele não tivesse medo de um escândalo na imprensa por causa da maconha rolando liberada na casa. O clima era o despojado chic da zona oeste paulistana.

No quintal, que lembrava o jardim da Casa do Sol da Hilda Hilst, eu olhei pra cima e vi uma mangueira gigante e muito carregada. Alguém gritou algo que parecia “filha da puta” e quando eu virei na direção do grito, as pessoas estavam na formação clássica de casamento e o Haddad beijando a noiva, que em nenhum momento eu pude ver o rosto. Não teve discurso nem votos. E todo mundo aplaudiu.

Tales Ab’Sáber, comentário no Facebook de Tiago Ferro sobre o sonho, 16 de setembro

A elegância utópica do mundo da diferença. A utopia Brasil persiste como sonho, mesmo que seja de classe. A violência no horizonte existe, mas se mantém à distância adequada. Uma espécie de avesso político-cultural do mundo do meu sonho de Alexandre Frota e Mira Schendel.

Voltamos ao Brasil moderno da elite ilustrada e da sociabilidade sem violência, do modernismo, da bossa, da USP crítica, dos ricos entre si de classe média! Para dar conta de uma nova ordem de violência pública e política que não sabemos como sonhar. Haddad também significa esse sonho.

Tiago Ferro, resposta ao comentário de Tales Ab’Sáber, 18 de setembro

Boa, Tales! Nós, os “marxistas chics” (como disse Caetano Veloso), sempre nos vendo obrigados a atrasar o relógio e a viver uma modernidade de estufa. O pior dessa segunda rodada de atraso pós-novo-golpe é que dessa vez a própria modernidade mundial tá fazendo água e o Brasil acaba não estando mais tão fora da ordem assim.

Tiago Ferro, mensagem no messenger para Tales Ab’Sáber, 20 de setembro

Um sonho muito estranho com você. Eu tinha um horário marcado com você, mas o seu consultório era o de um médico convencional: luz branca, móveis de escritório, secretária etc. E você só falava em política e eu pensava aflito se aquilo era mesmo uma sessão de análise. Em determinado momento, eu só me preocupava em devorar o bacon na bandeja de inox entre nós e você insistia que eu parasse para dar o que havia ainda ali para os cachorros. Tenho sonhado muito...

Tales Ab’Sáber, respostas no messenger à mensagem de Tiago Ferro

Mundo-cão.

Tamos muito impressionados com tudo ao redor.

Tiago Ferro, resposta à Tales Ab’Sáber

Sim.


Tales Ab'Sáber, psicólogo, é professor de filosofia da psicanálise na Unifesp.

Tiago Ferro, escritor, é autor de "O Pai da Menina Morta" (Todavia).

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