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Felipe Scovino

Cartas de Oiticica revelam aclamação no exílio e protestos contra ditadura

Livro de correspondência situa obra do artista em cenário de turbulência política e efervescência cultural dos anos 60

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Felipe Scovino

Professor da Escola de Belas Artes da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

[RESUMO] Cartas trocadas por Hélio Oiticica com amigos durante a década de 1960, reunidas em novo livro, iluminam a voracidade da produção do artista e sua visão crítica sobre a cultura brasileira do período, que combinava potência inventiva e imersão na atmosfera de repressão da ditadura militar. A correspondência, argumenta o autor, aponta que a obra plástica e a escrita de Oiticica são inseparáveis, em um processo em que a linguagem assume os papéis de meio de invenção formal e campo de criação teórica.

O livro recém-lançado "Hélio Oiticica: Cartas 1962-1970" (Editora UFRJ), idealizado por César Oiticica Filho e organizado por Tania Rivera, reúne cartas enviadas pelo autor a amigos, em sua grande maioria artistas, traçando um painel robusto de um Brasil turbulento politicamente, mas essencialmente potente no campo cultural.

A obra contribui tanto para os estudos sobre a obra de Oiticica (1937-1980) quanto para o aprofundamento de pesquisas sobre a contracultura e a experimentação que a arte brasileira viveu nos anos 1960, apesar da atmosfera de medo imposta pela ditadura.

Hélio Oiticica no interior de galeria de arte em Londres
Hélio Oiticica no interior de galeria de arte em Londres - Projeto Hélio Oiticica/Divulgação

Ler sobre e a partir de Hélio é tomar consciência de uma cultura brasileira diversificada —suas citações abarcam Chacrinha, Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Glauber Rocha, Rogério Duarte e Torquato Neto, bem como seus amigos na Mangueira e a cultura underground— que foi sufocada, como indicam as experiências de exílio e autoexílio em razão da truculência do regime militar ("Em S. Paulo há tremenda tensão: estive com Gil e na casa dele cada vez que tocam a campainha tem-se que olhar de uma vigia pela outra porta para ver quem é", escreveu em carta para Lygia Clark).

O leitor toma contato com o que o artista plástico lia, via, aspirava e, claro, produzia. É interessante conhecer o Hélio crítico, que se confunde com um mercado de arte incipiente para as produções mais experimentais. Os artigos que escreve para periódicos são importante fonte de renda no período e, invariavelmente, temas das suas cartas.

A maior parte das cartas se concentra entre 1968 e 1970. Oiticica morou em Londres em boa parte desse período de amadurecimento da sua obra, que passou a receber destaque fora do Brasil.

Nas cartas, observamos que sua intimidade se mistura com o trabalho. As percepções sobre cultura e política se mesclam à saudade e ao cuidado com os amigos. Duas presenças assíduas no livro são Lygia Clark e Lygia Pape, que desenvolviam, assim como Hélio, práticas que se conectavam cada vez mais com o corpo e a coletividade e menos com o formalismo.

As dúvidas e as formulações de Oiticica nesse período estão ricamente apresentadas nas cartas trocadas com pares da sua geração e com artistas que começavam suas pesquisas em meados dos anos 1960, como Anna Maria Maiolino, Antonio Dias, Carlos Vergara e Rubens Gerchman. Vemos um Hélio generoso com os mais jovens, mas alguém que entendia que, independentemente da idade do seu interlocutor, a troca se dava na mesma intensidade intelectual e vivencial.

As cartas, como Rivera acentua no prefácio, não são descrições de projetos nem a oportunidade para percebermos com quem Hélio dialogava, mas parte inexorável da sua obra. É na escrita que o artista traça um panorama afetuoso e crítico sobre o meio cultural brasileiro, formula ideias e rascunha projetos em uma espiral sem valor de peso entre palavra, pensamento e obra plástica.

A escrita é também revista e ampliada por Hélio: ele escrevia cartas e trocava correspondências com amigos através de fitas cassete (são conhecidas as "héliotapes" que realizou com Haroldo de Campos em 1971 com a voz ocupando o lugar da escrita e o papel sendo substituído por meio tecnológico) e questionários "in progress", como César Oiticica Filho argumenta.

Em um livro seminal sobre a obra do artista ("Livro ou Livro-me: os Escritos Babilônicos de Hélio Oiticica, 1971-1978", de 2010), Fred Coelho se debruça sobre o projeto de publicação "Newyorkaises" ou "Conglomerado", que permaneceu em constante transformação ao longo da vida de Oiticica e nunca veio a público —um arquivo constituído tendo como devir sua própria existência ou acúmulo.

Tanto Coelho quanto Rivera, guardadas as especificidades das suas pesquisas, apontam essa urgência de que o trabalho de Hélio é a escrita. Sua obra plástica e o que escreve são reflexo um do outro e, portanto, não existe hierarquia. A linguagem é um meio de invenção não só da forma —pois a palavra surge muitas vezes distorcida, fragmentada, refeita no papel em uma relação direta com a poesia concreta— como um campo de criação para suas teorias.

Oiticica desenvolve, por exemplo, a ideia da "probjetessência", "derivado do conceito de‘probjeto’ inventado por Rogério [Duarte]: ‘probjeto’ seriam os objetos ‘sem formulação’ como obras acabadas mas estruturas abertas ou criadas na hora pela participação", como expõe em carta para Clark.

É importante atentar que a escrita do artista também possui caráter literário. Suas instruções para Pape encontrar no Rio de Janeiro Jerônimo, um dos seus amigos da Mangueira, e o informar que sua imagem vestindo o parangolé seria o pôster da sua exposição em Londres são hilariantes.

Um fato pouco conhecido é trazido à tona. Hélio comenta as "psychophotos", experiências de 1969 envolvendo montagens fotográficas ou "poemas-fotos" que eram enviadas aos amigos em "psychocards", embalagens cuidadosamente construídas. É um elo de aproximação com José Oiticica Filho, seu pai, cientista e figura importante na história da fotografia brasileira.

O livro, que caminha cronologicamente, termina em 1970, quando, depois de cerca de um ano em Londres para a produção da sua exposição individual (o "Whitechapel Experiment", como gostava de chamar) na mítica galeria Whitechapel, episódio que é central para o livro, Oiticica retorna ao Rio de Janeiro. Essa estadia na sua cidade natal se prolonga por poucos meses —ainda em 1970, ele segue para Nova York, onde permanecerá por cerca de sete anos.

Na capital inglesa —o artista ainda segue em rápidas temporadas em Paris, em Brighton e na Califórnia, onde participa de um seminário com Lygia Clark—, vive intensamente a "swinging London"; desenvolve roteiros de filmes; troca correspondências e, finalmente, reencontra os exilados Caetano e Gil; e convive com Guy Brett e o coletivo Exploding Galaxy.

Brett, importantíssimo na realização da exposição na Whitechapel, foi figura central, entre 1964 e 1966, na formação de Oiticica e de vários outros artistas latino-americanos que dialogaram com a arte cinética. Ele esteve à frente da galeria Signals nesses anos, juntamente com David Medalla e outros artistas.

Esse momento, aliás, é ricamente explorado no livro. Em carta para Medalla, Hélio narra um evento marcante na sua trajetória: durante a abertura da exposição "Opinião 65" no MAM-Rio, o artista e os integrantes (negros) da bateria da Mangueira, tocando seus instrumentos vestidos com parangolés, foram impedidos de performar no interior da instituição ("os diretores do Museu não gostaram da apresentação pois veem o Museu como algo muito ‘solene’ para tolerar tais heresias como o ‘samba’ ou o tipo de pessoa que o faz: os moradores das ‘favelas’ do Rio").

O livro se volta com intensidade para a decisiva passagem do artista plástico em Londres, um episódio até então pouco aprofundado pela bibliografia em português —em 2007, a Tate publicou "Oiticica in London", compêndio de Guy Brett e Luciano Figueiredo que reúne artigos, cartas e depoimentos de Hélio, artistas e amigos com que conviveu na cidade e críticos convidados.

O foco nesse período se justifica não só pela produção, naqueles tempos, de uma rara exposição de um artista brasileiro em uma prestigiosa instituição pública internacional como pelo fato de Hélio ter chegado ao Reino Unido poucos dias depois da decretação do AI-5, o que acabou dando origem a uma experiência involuntária de autoexílio.

Por um lado, tomamos contato com os trâmites para a realização da exposição, o cotidiano e as descobertas em Londres (shows de rock, o Living Theatre e o encontro com outros artistas), a difícil vida de imigrante, o panorama da produção dos seus amigos artistas também vivendo no exterior, seu olhar de estrangeiro para uma metrópole europeia e as críticas, em sua grande maioria positivas, que recebia da imprensa britânica.

Por outro lado, percebemos com mais intensidade Hélio como sujeito político, explicitado, por exemplo, na sua participação no boicote à Bienal de São Paulo de 1969. Seus protestos e discursos veementes contra a ditadura ganharam força ("para mim, hoje, cada vez mais, as pessoas têm que definir suas posições políticas; nas artes, sempre tão alienadas, parece haver uma urgência para isso; não podemos suportar posições ‘neutras’", escreveu em carta para o crítico Jean Clay), embora houvesse, imagino, o medo de a censura interceptar as cartas.

O clima de tensão também fica evidente quando escreve para sua mãe, Ângela Oiticica, pedindo que esconda a bandeira "Seja Marginal, Seja Herói" por receio que ela possa ser apreendida ou que algo pior aconteça ("não deixe ninguém entrar principalmente quem bater à porta").

As cartas são um retrato tanto da voracidade de Oiticica em produzir quanto da sua visão crítica sobre a dualidade entre a precariedade e a invenção que a cultura brasileira vivia. Estando no exterior, essa visão ganhou maior densidade.

Com a ditadura como pano de fundo, sua escrita mantém uma visão aguçada e politizada sem perder a esperança no porvir, simbolizada na alegria com que comenta as contribuições da sua geração, como pode ser observado em carta de 1969 para Gilberto Gil: "Gil, liguei o rádio e uma estação de Paris tocava ‘Coragem pra suportar’ – o comentarista dizia coisas ótimas; não, não estamos sós, fique sabendo".

Hélio Oiticica: Cartas 1962-1970

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