Ballroom celebra vida e talento de artistas pretos LGBTQIA+

Movimento criado por mulheres trans em Nova York nos anos 70 se reinventa no Brasil; baile em SP homenageia pioneiros da cena

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  • Existe um espaço em que pessoas pretas LGBTQIA+ são livres. É um lugar onde elas são vistas com respeito e admiração; onde, por meio da arte, podem ser acolhidas, reconhecidas e celebradas. Esse espaço de encontro e celebração se chama ballroom.

    A cena ballroom foi criada por mulheres trans negras e latinas de Nova York nos anos 1970 como ambiente de lazer, experimentação artística e resistência contra a violência e a discriminação.

    Longe de ser uma cena underground, a ballroom inspira ícones da cultura pop como Beyoncé e Madonna e vem se consolidando como um fenômeno global que abrilhanta a noite de cidades tão distantes quanto Paris, Lagos e Tóquio.

SÃO PAULO / SÃO PAULO / BRASIL -02 /08/23 - :00h - Ensaio visual  da Pioneer Ball, organizada pela casa de Hands Up. A cena de ballroom em São Paulo.  ( Foto: Karime Xavier / Folhapress) . ***EXCLUSIVO***Ilustríssima
SÃO PAULO / SÃO PAULO / BRASIL -02 /08/23 - :00h - Ensaio visual  da Pioneer Ball, organizada pela casa de Hands Up. A cena de ballroom em São Paulo.  ( Foto: Karime Xavier / Folhapress) . ***EXCLUSIVO***Ilustríssima

Félix Pimenta e Fênix Mandacaru, pessoas pioneiras da ballroom no Brasil, se apresentam como júri da Pioneer Ball, evento realizado em São Paulo no final de julho; abaixo, performance de Jayaci Hands Up - Fotos Karime Xavier/Folhapress

  • No Brasil, o movimento fincou raízes ao longo da última década e se espalhou rapidamente por todas as regiões do país, onde vem se reinventando graças a uma nova geração de artistas trans, pretos e periféricos.

    No dia 31 de julho, uma segunda-feira, a comunidade ballroom se reuniu em São Paulo para uma ocasião muito especial: a Pioneer Ball, evento para exaltar o legado de pioneirismo daqueles que construíram a cena.

Viemos homenagear as pessoas que abriram os caminhos para que nós pudéssemos estar aqui hoje. Estamos celebrando a nossa ancestralidade viva

Juani Hands Up mestre de cerimônias, em anúncio ao microfone
  • Ir a uma ball (baile) é uma experiência única. Trata-se de um espetáculo eletrizante que mistura elementos de desfiles de moda, shows de drag e duelos de MCs —o ponto alto são as batalhas de vogue, estilo de dança performática nascido nos salões de baile do Harlem, em Nova York.

    Para os artistas que ali caminham, ou se apresentam, a ball é o maior palco de todos. Ao performar diante de seus pares, precisam estar abertos às críticas de pessoas mais experientes. Quem se destaca tem a chance de ganhar um dos cobiçadíssimos troféus.

    A pressão e a honra de caminhar são ainda maiores na Pioneer Ball. O júri é formado por pessoas pioneiras, título reservado a artistas que ergueram a cena do zero e que exercem a função de autoridade moral dentro da comunidade. 

    Um dos jurados é Félix Pimenta. Precursor da ballroom no Brasil, ele vem promovendo a cultura de baile na noite paulistana por meio de festas como Batekoo, Amem e Parada Preta.

    Outra jurada é Ákira Avalanx, artista que vem ajudando a popularizar a ballroom em São Paulo por meio de aulas gratuitas de vogue no vale do Anhangabaú, no centro da cidade.

    O júri também conta com Fênix Mandacaru, responsável por levar a ballroom para o Nordeste e uma das maiores referências em pesquisa acadêmica sobre a cena.

Este é o momento de a nova geração conhecer nosso nome e legado. A melhor forma de fazer isso é o baile, nosso espaço de confraternização

Fênix Mandacaru em entrevista à Folha durante o evento, realizado no Coringa, casa de shows em Pinheiros, zona oeste da capital
SÃO PAULO / SÃO PAULO / BRASIL -02 /08/23 - :00h - Ensaio visual  da Pioneer Ball, organizada pela casa de Hands Up. A cena de ballroom em São Paulo.  ( Foto: Karime Xavier / Folhapress) . ***EXCLUSIVO***Ilustríssima
SÃO PAULO / SÃO PAULO / BRASIL -02 /08/23 - :00h - Ensaio visual  da Pioneer Ball, organizada pela casa de Hands Up. A cena de ballroom em São Paulo.  ( Foto: Karime Xavier / Folhapress) . ***EXCLUSIVO***Ilustríssima

No alto, Lilyth Lume e Cory Raju caminham na categoria runway; em seguida, performances de Kasyade e Pietra Pepê - Fotos Karime Xavier/Folhapress

  • O público se anima com as apresentações dos jurados, embalados pelo som da DJ Luwa Cheia, quando o MC Juani anuncia que está aberta a categoria "runway" (passarela).

    Vestindo maiôs pretos e faixas de miss, a dupla formada por Lilyth Lume e Cory Raju desfila com passos firmes sob gritos e aplausos da plateia.

Aqui eu sou quem eu gostaria de ser. Nas ruas, pessoas trans e pretas são mortas todo dia. A ballroom fala sobre vida

Cory Raju no camarim, momentos antes de se apresentar
  • A indumentária de miss faz referência às pioneiras Crystal e Lottie LaBeija, mães fundadoras da cena ballroom nos Estados Unidos. Incomodadas com atitudes racistas dos jurados dos concursos de beleza de drag queens, elas organizaram em 1972 o primeiro baile voltado para pessoas LGBT+ negras e latinas em Nova York.

    Crystal e Lottie também foram responsáveis pela fundação da House of LaBeija, a primeira de muitas "houses" da comunidade ballroom. As "houses" são, ao mesmo tempo, coletivos artísticos e famílias adotivas para jovens LGBT+ expulsos de seus lares.

  • Peu Morais, da Casa de Mutatis, conta ter sido acolhido após receber o diagnóstico de HIV. “A comunidade me ajudou a não adoecer com o vírus social”, diz ele, se referindo ao estigma que ainda cerca pessoas soropositivas.

    Segundo Peu, esse acolhimento abre espaço para que múltiplos talentos desabrochem. “Algumas pessoas entraram para aprender vogue e hoje têm destaque na música ou como produtores ou DJs”, afirma o cantor, poeta e ator.

     

SÃO PAULO / SÃO PAULO / BRASIL -02 /08/23 - :00h - Ensaio visual  da Pioneer Ball, organizada pela casa de Hands Up. A cena de ballroom em São Paulo.  ( Foto: Karime Xavier / Folhapress) . ***EXCLUSIVO***Ilustríssima
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No alto, Jessy Black Velvet imita poses de modelos da revista Vogue ao caminhar na categoria "old way"; em seguida, performances de Wiliano Mamba Negra e Edan Mutatis - Fotos Karime Xavier/Folhapress

  • Os olhares se voltam para a passarela quando é anunciada uma das categorias mais aguardadas da noite: "old way", a forma clássica de se dançar vogue. Nela, os dançarinos executam com precisão movimentos angulares, simétricos e lineares com seus braços e pernas.

    Finalistas da categoria, Jessy Black Velvet e Edan Mutatis exibem exemplares da revista Vogue durante suas performances. O gesto é um tributo à pioneira Paris Dupree, que inovou as balls de Nova York nos anos 1980 ao transformar em coreografia as poses das modelos estampadas em revistas de moda, entre as quais a Vogue. É daí que vem o nome do estilo de dança.

    Jessy diz que sua arte fica no cruzamento do tradicional com o futurista. Para elu (Jessy se identifica por meio de pronomes neutros), "a ballroom está em 2070".

    Passou pelo ballet e pelo jazz, mas foi no ambiente da ballroom que se entendeu como pessoa trans não binária e iniciou a sua transição de gênero.

Aqui eu encontro liberdade para expressar o meu gênero. É algo ancestral

Jessy Black Velvet
SÃO PAULO / SÃO PAULO / BRASIL -02 /08/23 - :00h - Ensaio visual  da Pioneer Ball, organizada pela casa de Hands Up. A cena de ballroom em São Paulo.  ( Foto: Karime Xavier / Folhapress) . ***EXCLUSIVO***Ilustríssima
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No alto, a pioneira Ákira Avalanx; em seguida, a pioneira Eduarda Kona Hands Up e Aiyra Pimenta - Fotos Karime Xavier/Folhapress

  • Em seguida, é a vez da categoria "vogue femme", estilo mais contemporâneo que eleva ao extremo a carga de dramaticidade da performance.

    O público entra em êxtase cada vez que os artistas executam um "dip", passo que consiste em mergulhar o corpo para trás de forma repentina, aterrissando sobre as costas com uma perna estirada para o alto. É um movimento icônico, ousado e arriscado.

    Na passarela, os competidores se entregam de corpo e alma para honrar o legado da pioneira Eduarda Kona, que está presente na Pioneer Ball como "chanter" (narradora). "Fico feliz que esta travesti aqui esteja sendo homenageada antes de bater as botas", diz, rindo, ao público.

Veja vídeo da categoria 'vogue femme' na Pioneer Ball

SÃO PAULO / SÃO PAULO / BRASIL -02 /08/23 - :00h - Ensaio visual  da Pioneer Ball, organizada pela casa de Hands Up. A cena de ballroom em São Paulo.  ( Foto: Karime Xavier / Folhapress) . ***EXCLUSIVO***Ilustríssima
  • Kona fundou em 2015 a House of Hands Up, primeira casa da comunidade ballroom no Brasil. Desde então, dezenas de outras "houses" se estabeleceram no país.

    Nascida em Brasília, a House of Hands Up abriu recentemente um novo capítulo (filial) em São Paulo. Seu primeiro evento na cidade foi justamente a Pioneer Ball, organizada em parceria com o coletivo Confraria dos Pretos.

    Eventos como este oferecem mais do que diversão e arte. Para Marvena de Ubuntu, o baile é um ritual que a fortalece para enfrentar o racismo e a transfobia no dia a dia.

No palco, sinto como se eu fosse a Beyoncé. Ao acordar na segunda-feira, essa memória do fim de semana me dá forças até para ir à padaria. A ballroom me faz viva

Marvena de Ubuntu
  • Beyoncé também reconhece a importância da cena. "Renaissance", seu álbum mais recente, é repleto de referências à cultura de baile, e o elenco de dançarinos de sua turnê conta com expoentes da cena americana, como Honey Balenciaga. Nos últimos anos, a ballroom inspirou ainda a série ficcional "Pose" (FX) e o reality de competição "Legendary" (HBO Max). 

    Antes disso, em 1990, Madonna lançou a música "Vogue" e levou dançarinos da House of Xtravaganza para sua turnê. Naquele mesmo ano, foi lançado o documentário "Paris is Burning", um clássico queer que retrata a cena de Nova York.

    Já a cena do Rio de Janeiro é tema da série documental "Segura Essa Pose", da Globoplay, com previsão de estreia para o ano que vem.

    No Brasil, a ballroom ganhou vida própria, se mesclando com outras tradições afrodiaspóricas como a capoeira e o passinho do funk. Em abril deste ano, ocorreu em Brasília a primeira ball indígena.

    São muitos os desafios que esses artistas enfrentam. Os eventos geralmente são organizados de maneira independente e sem patrocínio, lembra Jô Gomes, produtora-executiva da Pioneer Ball.

É importante que instituições públicas e privadas fomentem a cultura produzida por grupos historicamente marginalizados

Jô Gomes
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No alto, batalha entre Pieel e Kalef Castro na categoria "baby vogue"; em seguida, performances de Gavião Biel Harpya e Jayaci Hands Up - Fotos Karime Xavier/Folhapress

  • O anúncio de uma categoria surpresa na Pioneer Ball aponta um futuro promissor para a comunidade.

    Com 15 pessoas caminhando, quase metade do total de competidores da noite, "baby vogue" é a categoria mais disputada. Os novatos demonstram fôlego, sem deixar a desejar em nível técnico, para manter a cena viva.

    É o caso de Pieel. Com sorriso no rosto, ele encanta os jurados em sua primeira apresentação em uma ball e leva para casa o troféu da categoria.

Esta vitória significa muito para mim, pois o júri é composto por pioneiros. São nossas referências. As pessoas que começaram tudo

Pieel
  • Olhando para frente, ele vislumbra uma cena fervilhante, com apoio financeiro e eventos em grandes centros e periferias por todo o país. “Para muita gente, a ballroom é uma terapia e um refúgio.”

Pieel exibe o troféu da categoria "baby vogue" durante a Pioneer Ball - Foto Karime Xavier/Folhapress

Colaboraram Giovanna Stael, Karime Xavier e Naná DeLuca

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