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André Fischer

Estamos prontes para o gênero neutro?

Serão necessárias décadas até que mudança seja aceita por todos

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André Fischer

Diretor do MixBrasil, consultor de diversidade e comunicação inclusiva e autor de, entre outros, “Manual Ampliado de Linguagem Inclusiva” (editora Matrix, 2021)

[resumo] Demandas legítimas de dar voz a pessoas que não se enquadram no padrão de gênero, as linguagens neutra e inclusiva podem nos ajudar a alterar pensamentos e práticas sociais ultrapassadas, avalia pesquisador.

A discussão sobre linguagens inclusiva e neutra tem gerado embate caloroso entre pessoas que adotam pronomes neutros e alguns políticos que querem proibir sua aplicação.

Muitas pessoas, erroneamente, tratam as duas (inclusiva e neutra) como se fossem sinônimas. Apesar de ambas proporem uma comunicação baseada em empatia e no reconhecimento de direitos, abordam aspectos distintos.

Para entender suas diferenças e semelhanças, devemos ter em mente dois princípios básicos: a língua é baseada em códigos comuns compartilhados que possibilitam a comunicação, e os idiomas são sistemas vivos e dinâmicos que evoluem constantemente.

Uma das evoluções mais emblemáticas do português brasileiro foi o “você”, uma segunda pessoa do singular conjugada como terceira, e o completo abandono do vós. No entanto, ainda que “você/vocês” seja corrente há mais de um século, até hoje nas salas de aula aprendemos a conjugar verbos somente com “tu/vós”.

A linguagem neutra advoga o uso imediato de um pronome neutro exclusivo para pessoas, diferente do “it” inglês que denomina objetos, complementando os binários “ele/ela” no singular. E cria também uma terceira pessoa do plural para todos os gêneros.

Essa iniciativa é válida e justificável para incluir e dar voz a pessoas não binárias, de gênero fluido ou transgêneras que não se enquadram no padrão de gêneros. No caso do plural, também traria a vantagem de evitar o masculino genérico, que torna o feminino e as mulheres intencionalmente invisíveis.

Mesmo sendo demanda legítima, a adoção do gênero neutro demandará a superação de algumas questões práticas. A começar, por encontrar um consenso entre os sistemas que usam diferentes pronomes neutros —principalmente “ile”, mais encontrado em perfis de pessoas não binárias no Linkedin, e o “elu”, mais popular entre os jovens nas escolas.

E não basta dizer todes, no lugar de todos e todas, ou bem-vindes. A adoção do neutro implica uma série de novas regras para artigos (o,a,e), numerais (ume, dues), pronomes pessoais oblíquos, possessivos (minhe, tue, sue) e demonstrativos (aquele, aquela,aquile/aquelu) —assim como a criação de terceiro gênero para milhares de palavras, como avô/avó/avôe ou monge/monja/monjie.

Essa não poderia ser uma mudança imposta. Serão necessárias décadas até que seja reconhecida nas gramáticas e aceita por uma parcela significativa da população. É preciso deixar claro que não se trata apenas de modismo, o que só reforça a necessidade de aprofundar o debate.

Nesse ponto, é importante voltarmos à diferenciação mencionada no início do texto. A linguagem inclusiva usa apenas palavras já existentes para diminuir marcadores de gênero e eliminar vocabulários racistas, lgbtfóbicos, xenófobos e que discriminam pessoas com deficiência ou mais velhas.

Segue a norma gramatical da língua portuguesa utilizada hoje no Brasil e pode ser aplicada universal e imediatamente, sem causar qualquer ruído, independente de mudanças formais. Depende, basicamente, de boa vontade e de observar técnicas simples para começar a incluir algumas modificações na maneira de escrever e falar.

A lógica é usar termos sem vieses preconceituosos ou que reforcem o masculino genérico, sem grandes contorcionismos semânticos, como, por exemplo, substituir “bem-vindos” por “boas-vindas”.

Entre as boas práticas inclusivas estão mencionar sempre masculino e feminino (alunos e alunas, os médicos e as médicas) e usar substantivos para se referir a instituições, no lugar dos homens que fazem parte delas (trocar diretores por diretoria, senadores por Senado).

Deve-se evitar, a todo custo, dizer homem no sentido de humanidade, um machismo normalizado que dói nos ouvidos de quem já sintonizou a inclusão no discurso.

A comunicação inclusiva não economiza no termo “pessoa” (pessoa interessada ao invés de interessado) e ressalta o fato de que pessoas com deficiência, pessoas surdas ou pessoas com autismo são seres humanos acima das suas deficiências, algo que quem diz deficiente, surdo ou autista parece esquecer.

Também é uma atitude inclusiva incorporar elementos da linguagem simples, técnica de comunicação que tem como objetivo tornar textos acessíveis a todas as pessoas.

Frases com até 25 palavras, poucas vírgulas, sem jargões técnicos e na ordem direta sujeito-verbo-predicado são comprovadamente mais fáceis de ler por qualquer pessoa, mesmo com letramento mínimo.

Adotar a linguagem inclusiva traz a possibilidade de usar palavras que não costumamos empregar em nosso léxico pessoal cotidiano e requer, por vezes, a reformulação de algumas frases. Por meio dela podemos começar a modificar padrões de pensamento ultrapassados, tanto nossos quanto das pessoas com quem nos comunicamos.

Faz parte desse processo sair da zona de conforto cognitivo e repensar o conteúdo do que falamos e escrevemos. De quebra, evitamos constrangimentos e atualizamos nosso discurso, tornando-o menos sexualizado e mais sexy.

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