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Ricardo Aceves

Uma geração de argentinos com incerteza, instabilidade e medo do futuro

Pessoas vivem com desânimo, sem visão de longo prazo e aferradas ao que possuem

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A geração de argentinos com idades entre os 30 e os 50 anos recebeu uma herança pesada: instabilidade econômica, agitação política e flagrante corrupção. A combinação desses três elementos, por familiar que soe aos latino-americanos, é especialmente relevante na Argentina. Pois levou toda uma geração de seus cidadãos a viver com desânimo, sem visão de longo prazo e aferrada ao que possui, por medo de perder tudo.

A Argentina é a terceira maior economia da América Latina e desde o começo da década de 1980 essa geração não sabe o que é viver sem desvalorizações decretadas de surpresa, inflação elevada, “corralitos” (congelamentos de contas bancárias), e patadas (econômicas) de todo tipo. Viram seus ativos perderem o valor em crise após crise. Por desconhecerem crédito, exceto em alguns anos efêmeros de estabilidade, os argentinos dessa geração não tiveram estímulo algum para poupar, pois a confiança nos bancos e nas bolsas é inexistente, inclusive agora, quando o país tem uma taxa de juros de 60%, superior à da Turquia, Irã e até Venezuela. O motivo: eles viram as economias de seus pais desaparecerem da noite para o dia.

Tampouco confiam em guardar dinheiro embaixo do colchão, pois a inflação recorrente (hoje em torno de 35% ao ano) faz com que os argentinos comprem o necessário de imediato, por temerem que os preços venham a subir em poucos meses, ou mesmo semanas. Meu novo vizinho, que chegou de Buenos Aires a Barcelona há cerca de nove meses, disse que lá a inflação não consome somente seus bolsos; “consome também seus miolos”.

Consumir de preferência a poupar e gastar antes de investir. Anos de má gestão, corrupção e roubos de fundos públicos levaram a Argentina a experimentar uma profunda e desastrosa crise econômica, entre 1998 e 2001, e fizeram que o país sucumbisse ao populismo demagógico. Os agudos problemas políticos e econômicos que o país sofria se viram exacerbados pelo confronto entre o governo argentino e o Fundo Monetário Internacional (FMI), e seu plano de reformas severas. Como resultado, a Argentina suspendeu o pagamento de sua dívida externa, o que levou ao calote sobre dívidas de US$ 160 bilhões, a maior inadimplência soberana (default) da história.

Recentemente, o FMI retornou à Argentina e aprovou a maior linha de crédito já recebida pelo país: US$ 57 bilhões. Em troca, o governo do presidente Mauricio Macri se comprometeu a cumprir as “recomendações” que a instituição multilateral acrescentou ao contrato: um plano drástico de austeridade para reduzir o déficit fiscal, e a abstenção do banco central de intervir no mercado de câmbio. Isso fez com que as panelas voltassem a ser batidas nas ruas e que o presidente do banco central, Luis Caputo, renunciasse logo depois de assumir, em julho.

Esse último pacote de resgate evoca os fantasmas dos últimos 30 anos e os traumas ainda estão à flor da pele. Os argentinos se aferram ao emprego seguro, porque as oportunidades no setor privado são escassas. O índice de desemprego ronda os 10% e, embora se encontre ainda longe dos índices de 20% registrados no início no início do século, as crises alimentaram em meus contemporâneos argentinos uma cultura de veneração pelo funcionariado.​

Ante a incerteza, instabilidade e medo, o emprego estatal parece ser o desejo dessa geração, que com os anos se viu empurrada ao conformismo. A consequência disso é o superdimensionamento do aparato administrativo, que se converte em um aspirador de talento e em uma máquina de criação de dívidas que, por sua vez, alimenta o círculo vicioso que definitivamente é em boa parte a origem das crises econômicas recorrentes da Argentina.

Há nove meses, meu vizinho decidiu se unir a essa diáspora mundial argentina –duradoura e enorme. E agora, na Espanha, ele conta que embora boa parte de seus compatriotas mantenha o espírito imigrante de seus avós e a confiança empreendedora de seus pais, número cada vez maior deles perderam o entusiasmo. Em minha opinião, a incerteza e desconfiança dessa geração são não só um fenômeno argentino mas mundial, e ainda mais complexo. Ainda assim, creio que na Argentina as crises econômicas recorrentes e os maus governos – populistas ou tecnocráticos –exacerbam esse conformismo temeroso e quietude apática, em uma geração que não pôde pensar no futuro.

Ricardo Aceves

É um economista mexicano especializado em temas macroeconômicos latino-americanos, e hoje trabalha como analista de riscos na agência qualificadora italiana CRIF Ratings, em Barcelona. Anteriormente trabalhou como economista sênior para a América Latina na consultora FocusEconomics.

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