Lobby paraguaio contra tributo de cigarro favorece contrabando

Estima-se que 70% da produção do país seja vendida no Brasil ilegalmente

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Plantação de tabaco na região de Choré, no Paraguai; maior parte da produção é contrabandeada para o Brasil Fábio Zanini/Folhapress

Choré (Paraguai) e São Paulo

Campeão de vendas nas ruas de São Paulo, o cigarro paraguaio Eight começa a tomar forma a 1.300 km de distância, em locais como a propriedade do agricultor Mario Espinola, 42.

Plantador de tabaco em Choré, cidade de 35 mil habitantes no centro do Paraguai, Espinola cultiva 32 mil pés das variedades Virginia e Negro em sua propriedade de 20 hectares.

Colhe de três a quatro toneladas por safra, vendidas por meio de uma cooperativa para a Tabesa, principal empresa de cigarro paraguaia. De propriedade do ex-presidente Horacio Cartes, tem cerca de 50% do mercado local e fabrica a maior parte dos cigarros que entram no Brasil de forma ilegal, via contrabando.

Espinola diz não ter ideia sobre o que é feito de sua produção. Ao ouvir os nomes de marcas paraguaias, que circulam livremente no Brasil em média pela metade do preço de produtos brasileiros, responde apenas: “Não conheço”.

E segue amarrando as grandes folhas de tabaco em varais feitos de troncos de madeira, que depois são levados para a secagem em fornos a lenha. É ajudado na tarefa, numa cabana de palha em meio à sua lavoura, pela mulher, um tio e um primo. A filha pequena observa tudo tomando mate, bebida típica da região.

Plantadores preparam o tabaco para a secagem na região de Choré, no Paraguai - Fábio Zanini/Folhapress

Pequenos agricultores como Mario Espinola são usados como álibi pelo lobby do tabaco paraguaio para evitar o aumento do imposto do cigarro no país, um dos mais baixos do mundo.

Com apenas 18% de taxação mínima, ante 71% no Brasil, os cigarros paraguaios respondem por 57% do consumo brasileiro, segundo pesquisa do Etco (Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial), entidade que faz campanha anticontrabando.

 

A discrepância na carga tributária entre os dois países é apontada como principal razão para que os cigarros paraguaios cheguem ao Brasil a preço baixo, conquistando fatia expressiva do setor.

Das 10 marcas mais vendidas em território brasileiro, 5 são provenientes do país vizinho. O cigarro Eight, da Tabesa, é o líder, com 16% do mercado no Brasil.

São 16 mil pessoas na cadeia produtiva do tabaco no Paraguai, sendo 70% no departamento de San Pedro. A região de Choré é o principal polo.

A produção de 3.800 toneladas por ano é apenas 10% do utilizado pela indústria do cigarro paraguaio, que importa o restante de Brasil, Argentina e outros países. Mas a importância política dos chamados “tabacaleros” é bem maior do que seu tamanho.

Eles são ligados à Tabesa pela cooperativa Compañia Agrotabacalera del Paraguay e bastante atuantes na mobilização contra o aumento do imposto. Costumam ser presença constante em audiências no Congresso, na capital, Assunção, a 225 km de distância.

 

Procurados por email, telefone e pessoalmente em Choré, representantes da cooperativa não atenderam à reportagem.

Genciano Riveros, 67, planta tabaco Virginia, tipo mais comum na região, há 18 anos. Dos 13 filhos, 5 o ajudam na produção e 2 têm suas próprias chácaras. O aumento do imposto seria um desastre para produtores como ele, diz.

“Se sobe o imposto, Cartes vai fechar sua empresa, vamos ter um grande problema social. O que vamos plantar aqui?”, afirma, no idioma guarani, bem mais comum que o espanhol na região.

O agricultor paraguaio Genciano Riveros, que planta tabaco da variedade Virginia, na região de Choré, no Paraguai - Fábio Zanini/Folhapress

Ele colhe dez toneladas por safra do que chama de “ouro verde” e diz que sabe vagamente para onde se destina sua produção após ser vendida para a Tabesa. “Os caminhões vêm aqui e pegam as folhas. Escuto que depois isso vai ao Brasil”, afirma.

Os percalços da produção, diz Riveros, são muitos. A ligação com a cooperativa traz vantagens e problemas. Por um lado, os produtores contam com assistência de agrônomos e podem usar fornos comunitários. Por outro, têm de aceitar vender pelo preço exigido, e a reclamação é constante.

Cada quilo de tabaco Virginia é comprado pela cooperativa por uma faixa que vai de 10 mil a 16 mil guaranis (R$ 6 a R$ 10), dependendo da qualidade da produção.

Para tentar fugir da dependência, produtores têm buscado diversificar para a variedade Negro, preferida por compradores chineses. Mas o preço é menor, na faixa de 5.000 guaranis o quilo (R$ 3,20).

Silvino Nuñez, técnico agrícola que trabalhou por dez anos na cooperativa, afirma que o atual presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, é visto com desconfiança pelos “tabacaleros”. “Ele não procura defender os plantadores como fazia Cartes [presidente de 2013 a 2018]”, diz.

Fragilizado politicamente após um acordo com o Brasil sobre a eletricidade de Itaipu que quase o derrubou, Benítez é visto pelo setor como fraco e suscetível a pressões.

Os agricultor paraguaio Genciano Riveros (à esq.), que planta tabaco da variedade Virginia, na região de Choré, no Paraguai, e o ex-diretor da Agrotabacalera, Silvino Nuñez (à dir.) - Fábio Zanini/Folhapress

A avaliação de autoridades brasileiras é que o combate ao contrabando passa pela alta do imposto no Paraguai, mas as tentativas nesse sentido fracassaram nos últimos anos.

A faixa de impostos do cigarro paraguaio vai de 18% até 22% e subirá a 24% em 2020. Mas na prática a taxação é pelo piso.

“O lobby da indústria do tabaco é muito presente, inclusive via financiamento de campanhas de congressistas”, afirma a senadora Esperanza Martinez, da Frente Guasú, partido de esquerda.

Ex-ministra da Saúde do presidente esquerdista Fernando Lugo (2008-12), ela é uma das principais vozes no país em defesa do aumento do imposto dos cigarros.

Quando esteve no governo, foi derrotada diversas vezes pela bancada do Partido Colorado, o principal do país e ao qual pertencem Cartes e o atual presidente.

“O discurso é sempre o mesmo, de que vai prejudicar o emprego, a economia e a agricultura familiar. Mas as pesquisas mostram que 80% das pessoas defendem o aumento dos impostos, inclusive os fumantes.”

Ela diz que o imposto poderia ser aumentado para algo como 50%, ainda assim abaixo dos padrões internacionais.

 

“O dinheiro extra poderia ser utilizado para a saúde pública e na conversão de agricultores do tabaco para outras culturas”, diz.

A Folha não conseguiu contato com políticos que fazem lobby pelo imposto baixo, mas seus argumentos são facilmente identificáveis em debates no Congresso.

Um dos mais atuantes é o senador Juan Carlos Galaverna, do Partido Colorado. “Acho até simpático ouvir colegas que dizem que 20 centavos de dólar [de imposto] não vão quebrar ninguém. Claro que não, mas não se trata de um maço, se trata de centenas de milhares”, disse ele, durante debate no Senado em maio.

Algo semelhante foi dito em 2018 pelo colorado Pedro Alliana, presidente da Câmara dos Deputados. Ele negou que a rejeição ao aumento do imposto seja para proteger Cartes e sua empresa, a Tabesa.

“Não se trata de ser contra ou a favor de um empresário ou uma empresa apenas, mas de tantos produtores que poderiam ter privada a possibilidade de seguir trabalhando.”

Estima-se que a produção no Paraguai fique em torno de 50 bilhões de cigarros por ano, mas menos de 10% se destinam ao mercado interno.

Do restante, cerca de 70% são vendidos ao Brasil. Não por acaso, as principais fábricas paraguaias ficam perto da fronteira, nos arredores de Ciudad del Este, separada de Foz do Iguaçu (PR) pela ponte da Amizade.

Produto é vendido em SP livremente; PF diz reprimir contrabando

Nas ruas de São Paulo, os cigarros paraguaios são vendidos abertamente. Numa banca de jornal na praça Padre Bento, no Pari (região central da capital paulista), não há cigarros brasileiros à venda, mas é possível comprar um maço dos paraguaios Eight ou San Marino por R$ 5. Um cigarro avulso custa R$ 0,50.

Ali perto, no Brás, um vendedor monta uma banquinha diariamente na calçada, no cruzamento da avenida Rangel Pestana com a rua Maria Marcolina, em uma região de comércio popular.

Vende pacote com dez maços de Eight por R$ 30, ou R$ 3 cada um, quando no Brasil o mínimo previsto em lei é de R$ 5. Costuma chegar no final da manhã, quando o risco de uma batida policial é mais remoto.

Cigarros paraguaios vendidos na região do Brás, em São Paulo - Fábio Zanini/Folhapress

“O que dá dinheiro é contrabando”, disse ele, que não quis revelar o nome, enquanto policiais militares, a poucos metros, faziam uma patrulha a pé, sem incomodar as dezenas de ambulantes que vendiam de aparelhos eletrônicos a camisas de futebol.

Segundo o camelô, a mercadoria chega semanalmente à região de Santo Amaro (zona sul), onde ele vai buscá-las.

A Polícia Federal diz que os produtos chegam a São Paulo em caminhões-baú, que ficam no interior do Paraná aguardando serem abastecidos por atravessadores que trazem o produto do outro lado da fronteira.

“Os cigarros entram no Brasil de forma fracionada, para minimizar o prejuízo em caso de apreensão”, diz Fábio Tamura, delegado-executivo da Polícia Federal em Foz do Iguaçu.

diversas rotas de contrabando. Por Foz, os atravessadores usam pequenas canoas a remo à noite, aproveitando o fato de o rio Paraná ter apenas 400 metros de largura.

Cerca de 200 km ao norte, a região de Guaíra (PR) também é usada, com a travessia pelo lago de Itaipu, que é mais demorada, mas com mais possibilidades de despistar a fiscalização. Uma minoria também se aventura pela fronteira terrestre em Ponta Porã (MS).

“Usamos de tudo: informantes, infiltração de policial, pessoal escondido na base ao lado do rio”, diz Tamura.

Apreensões de cigarros são rotineiras, mas muitos furam o bloqueio e entram em São Paulo por Presidente Prudente, seguindo em geral até Ourinhos e depois rumo à capital paulista, de onde são distribuídos para várias partes do Brasil.

Apreensão de carga de cigarros que tentavam atravessar para o Brasil na região de Foz do Iguaçu - Divulgação/Polícia Federal

Segundo o delegado, há maior boa vontade do governo paraguaio em coibir o contrabando desde a saída de Cartes da Presidência, no ano passado, mas operações conjuntas dos dois países são praticamente inexistentes.

“A lei deles de lavagem de dinheiro não é tão avançada como a nossa. Lá, a polícia não pode requerer uma operação ao Judiciário, como aqui. Tem de levar ao Ministério Público antes, o que torna tudo mais lento”, declara.

As quadrilhas que trazem o cigarro ao Brasil operam nos dois países e incluem doleiros para pagamentos internacionais. Em geral, diz o delegado, a rota do cigarro é usada como teste para o contrabando de mercadorias mais perigosas.

“O cigarro é até mais prejudicial do que outros ilícitos. Uma rota aberta por cigarro é usada para levar drogas, armas e agrotóxicos”, diz.

Segundo a Receita Federal, foi aprendido em 2019 o equivalente a R$ 398 milhões em cigarros paraguaios, ou 10,5% a menos do que em 2018.

“Há vários fatores que influenciam esse decréscimo, dentre eles mudanças de pontos de entrada de mercadorias ilegais, mudanças de rotas e diminuição de entrada de produtos ilegais, entre outros”, afirmou a Receita em nota.

Uma dificuldade de coibir o comércio ilegal, diz o órgão, é o fato de as rotas usadas serem as mesmas do comércio legal, sendo impossível fiscalizar os milhares de veículos que circulam pelas estradas.

Os cigarros paraguaios não pagam imposto de importação, em razão das regras do Mercosul, mas têm que se submeter a regras de órgãos como Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e Secex (Secretaria de Comércio Exterior). Por isso, recorrem ao contrabando.

 

Nas contas do Etco, a evasão tributária pelo contrabando do cigarro paraguaio foi de R$ 12,2 bilhões em 2019, dinheiro que deixou de ser arrecadado pela perda de mercado do produto brasileiro.

O instituto defende um reescalonamento tributário no Brasil, baixando imposto de marcas mais baratas, para que possam concorrer com o produto contrabandeado, e aumentando o de versões premium para compensar.

“O mercado brasileiro [de cigarros] é dominado pelo contrabando do Paraguai. A ponto de haver a falsificação de cigarro paraguaio aqui no Brasil”, afirma Edson Vismona, presidente do Etco.

O instituto segue pressionando o Congresso do país vizinho para que aumente os impostos por lá. “Até o governo Cartes, era vetada qualquer menção na relação Brasil-Paraguai ao contrabando. Com a mudança de presidente, ao menos esse tema entrou na pauta”, diz Vismona.

Em março, o Ministério da Justiça criou um grupo de trabalho para discutir a redução de tributos do cigarro brasileiro, para que possa competir em preço com o paraguaio.

Houve quatro reuniões até junho. O ministério se coloca contra a redução do imposto brasileiro e a favor do aumento do custo no país vizinho.

“Sem um aumento dos custos gerais de produção do cigarro ilegal, qualquer redução dos tributos do tabaco no Brasil tenderia a ser inócua, considerando a possibilidade de redução do valor do cigarro contrabandeado para patamares mais abaixo dos atualmente praticados”, afirmou, em nota.

O ministério afirma que criou o programa Vigia, para barrar a entrada de contrabando no país. Em 2019, até o dia 10 de dezembro, foram apreendidos 28,5 milhões de maços de cigarros contrabandeados.

Empresa paraguaia diz que imposto do Brasil que é alto

A Tabesa, principal empresa de cigarros paraguaia, afirmou, em nota, que não tem relação com o contrabando de seus produtos para o Brasil. “O controle de aduanas e o trânsito fronteiriço de produtos que ingressam no Brasil competem exclusivamente ao Estado brasileiro.”

A empresa afirma ser uma indústria de cigarros que opera legalmente no Paraguai, com 90 mil pontos de venda no país e receitas que são declaradas e pagam tributos.

Sobre os impostos para o setor no Paraguai, a Tabesa diz que “não são baixos, são moderados”. “O problema é que no Brasil eles são excessivamente elevados”, declara, afirmando que é uma das maiores contribuintes tributárias do país vizinho.

“Às associações empresariais no Brasil e no Paraguai cabe defender seus legítimos interesses, buscando que os impostos sejam justos e adequados para que sua atividade seja rentável e sustentável”, diz a Tabesa.

A nota afirma ainda que o ex-presidente Horacio Cartes é acionista da Tabesa, mas não desempenha nenhuma função de direção ou administração na empresa.

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