Vinícolas adotam colheita no inverno e colecionam prêmios

Dupla poda da parreira eleva sofisticação dos vinhos produzidos em SP e MG

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Boa Esperança (MG)

A história começou há 13 anos, quando um produtor rural sofreu um infarto e o médico indicou o consumo diário de uma taça de vinho. Três anos depois, a família de Eduardo Junqueira Nogueira Junior iniciou a produção de seu próprio vinho em Boa Esperança, no sul de Minas Gerais, onde nunca ninguém tinha plantado uvas.

Na cidade cafeeira, mudanças na colheita fizeram com que o vinho local atingisse um grau de sofisticação que resultou em prêmios. O caso não é único.

Outras vinícolas em São Paulo também adotaram a dupla poda dos vinhedos, transferindo a colheita do verão, como tradicionalmente ocorre, para o inverno.

A alteração, aliada à amplitude térmica (diferença entre temperatura mínima e máxima do dia), tipo de solo e manejo, fez com que jovens vinícolas que entraram no mercado há menos de uma década passassem a colecionar prêmios e ampliassem suas produções de olho num mercado de vinhos de boa qualidade.

Há 400 hectares (quase três parques do Ibirapuera) de área cultivada com vinhedos usando a técnica no Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste.

Colhendo no inverno, o período de maturação da uva ocorre em dias ensolarados, com noites frescas e solo relativamente seco, cenário apontado por pesquisadores como fundamental para o perfeito amadurecimento das uvas e qualidade dos vinhos.

Rótulos produzidos assim chegam a custar mais de R$ 300.

Barris da vinícola Guaspari, em Espírito Santo do Pinhal, no interior de São Paulo, onde cresceu a produção de vinho de alta qualidade - Eduardo Anizelli/Folhapress

A Maria Maria, vinícola da família Junqueira Nogueira, tem 20 hectares plantados. Pouco, se comparado aos cerca de 3.000 hectares destinados a cereais e café, mas muito, em relação aos 5 hectares plantados há dez anos.

"É difícil fazer vinho ruim com uva boa. Já para fazer vinho bom com uva ruim o enólogo terá muito trabalho. O que apostamos é na qualidade do solo, na altitude e na redução de químico nas lavouras", disse o engenheiro agrônomo Eduardo Junqueira Nogueira Neto, 30, diretor da vinícola.

Já foram investidos cerca de R$ 5 milhões no negócio, visto pelos empresários como de retorno "muito demorado". 

Os 950 m de altitude e o solo vermelho argiloso geraram vinhos como o Syrah Gran Reserva Cristina, premiado pouco depois de entrar no mercado.

O ciclo invertido da videira existe desde 2001, a partir do trabalho de pesquisadores da Epamig (empresa de pesquisa mineira) de Caldas, mas comercialmente passou a ser adotado só nos anos seguintes. 

Estudos mostraram que as condições climáticas do sul de Minas e de regiões de São Paulo permitia dois ciclos anuais para a cultura e que o cenário do outono/inverno era semelhante ao das melhores regiões vinícolas do mundo.

Seguindo a fórmula, a Guaspari, a maior delas, passou a produzir uvas em 2006 no solo granítico da fazenda em Espírito Santo do Pinhal (SP), que remete à região do Vale do Rhône (França), na altitude (850 m a 1.300 m) e na amplitude térmica, que chega a 20ºC.

Os 50 hectares com nove tipos de uvas, como syrah, cabernet sauvignon e viognier estão divididos em 12 lotes, criando mini terroirs com o microclima de cada área.

Em cinco anos de atividades, coleciona uma dezena de prêmios, como a medalha de ouro por dois anos seguidos no Decanter World Wine Awards.

A premiação de um vinho com pouco mais de um ano de mercado acelerou os processos na vinícola, diz Fabrizia Gennari Zucherato, diretora-executiva da Guaspari, que produz de 150 mil a 180 mil garrafas anuais.

Outra vinícola a adotar o sistema foi a paulista Verrone, de Itobi, que plantou uvas em 2009, mas entrou no mercado só em 2016. Com três meses, recebeu um prêmio pelo chardonay. Hoje, já são mais de 20, diz o diretor da empresa, Márcio Vedovato Verrone.

A Verrone produz 50 mil garrafas anuais em 13 hectares, com destaque para o sauvignon blanc. "Fui convencido pelas condições climáticas da região. É um método mais caro, exige duas intervenções na uva, mas o resultado é ótimo."

Em comum, as vinícolas, além de novas, produzem menos que grandes marcas do país, como Miolo, que soma 10 milhões de litros por ano.

No cultivo tradicional, a videira é podada em agosto, para brotar em setembro, florescer em outubro, formar cacho em novembro e iniciar a maturação em dezembro, para ser colhida em janeiro e fevereiro.

Na dupla poda, o ciclo começa com a poda em janeiro, florada em fevereiro, formação do cacho em março e início de maturação em abril. A colheita ocorre entre o fim de maio e início de agosto.

"O período [tradicional] coincide com a época chuvosa, fazendo com que o ciclo de maturação e colheita se dê sob altas temperaturas e precipitações pluviométricas, o que afeta a qualidade da maturação", disse o "pai" do sistema, o engenheiro agrônomo e pesquisador em viticultura Murillo de Albuquerque Regina.

Outra vantagem apontada é que, como a maturação ocorre com tempo seco, se reduz os riscos de podridões dos cachos provocados por fungos. Cai também a necessidade de pulverizações na pré-colheita. Segundo o pesquisador, não há risco de resíduos de defensivos agrícolas nos vinhos de colheita de inverno.

O custo é mais alto, mas a avaliação é que o mecanismo se paga com a qualidade.

O empresário Luis Roberto Lorenzato, da Marchesi di Ivrea‚ (Ituverava, SP), disse a colheita em julho gera uma uva saudável, seca e boa para a produção de vinhos de qualidade.

O calor da região na maior parte do ano não é um empecilho para a produção de uvas italianas, como a sangiovese, em seus 12 hectares, afirma. 

"A Itália tem cidades em que a temperatura chega a 50ºC, como Bologna. O pessoal do sul do mundo criou um estigma que exigia frio, com medo de a uva avançar para outras regiões. Mas a uva gosta de calor também. Onde há café bom, há bons vinhos finos", disse.

Na avaliação do pesquisador Reginaldo Teodoro de Souza, da estação experimental de viticultura tropical da Embrapa Uva e Vinho, há outras regiões propícias para a produção de vinhos em São Paulo, como as de Campinas, Jundiaí, Jales e Pilar do Sul.

"Regiões como Poços [de Caldas, MG], Espírito Santo do Pinhal e mesmo Ribeirão Preto são propícias. Lugares altos têm essa característica mais facilmente, mas há locais com 450 m, como Jales, que produzem. Importante é as pessoas descobrirem as regiões e elaborarem bons vinhos, para baratear e ter mais pessoas aderindo", disse.

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