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Cofundadora de unicórnio conta trajetória de sua transição de gênero

Monique Oliveira é uma das cofundadoras da Movile, startup que atingiu valor de mercado de US$ 1 bi

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São Paulo

Uma das cofundadoras da Movile, startup brasileira dona do iFood que atingiu valor de mercado de US$ 1 bilhão, Monique Oliveira diz que já tinha noção que era diferente aos três anos de idade.

“Minha primeira memória era pegar o pano de prato e usar como saia. Me lembro até do cheiro do pano. Enrolava na cintura e me escondia embaixo da mesa. Chamava de brincadeira que ninguém pode saber”, diz.

A brincadeira era escondida porque Monique viveu sua infância como menino. A transição de gênero começou há apenas dois anos. “Passei minha infância nos anos 1980. Não sabia o que eu tinha.”

Sem entender ainda sua condição de transexual, ela foi se tornando uma adolescente reclusa e passou a se interessar por computadores; foi isso que a levou a prestar engenharia da computação.

“Nunca fui nerd. Não gostava de quadrinhos ou Star Wars, eu só era reclusa”, diz. O apelido Cyber surgiu nessa época, e é como ela é conhecida até hoje. Atualmente, Monique é sócia-fundadora da Cyberlabs, empresa de inteligência artificial.

*

Como é ser transexual no ambiente de tecnologia? Não tem tanto tempo, né? Tenho 43 anos, mas comecei a transição hormonal há três anos. No começo, não dava muito efeito porque eu já estava com 40 anos. Passei o primeiro ano sem falar nada pra ninguém.

Em 2018 fui a Miami fazer compras. Meu armário era todo masculino e pensei que Miami era ideal para refazer meu guarda-roupas. E lá eu poderia sair com menos chances de ser reconhecida. Aqui no Rio em qualquer esquina eu conheço alguém. Pensei nessa viagem e fui de primeira classe com a minha ex-mulher.

Ex-mulher? Fui casada de 2007 até 2014. Quando nos divorciamos eu resolvi escrever uma carta falando sobre como eu me sentia. Porque a gente se dava muito bem, somos muito amigas até hoje. Com a carta foi a primeira vez que eu li aquelas palavras [sobre se sentir mulher]. Eu tinha tanto medo de tornar tudo real. Fiz terapia por dois anos antes de começar a fazer o tratamento hormonal.

Sua ex-mulher foi a primeira pessoa para quem você contou? Não. Foi todo um processo. Comecei a contar para pessoas menos íntimas e foi estreitando o círculo. Meus pais foram os últimos a saber. Eles me tiveram mais velhos, minha mãe tinha 46 anos. Hoje, ela tem 85. Foi ler sobre o assunto, tenta me chamar com pronomes femininos. Meu pai me chama de fi, que não é nem filho nem filha.

E seus sócios na Movile? Meu sócio no Cyberlabs, que também era na Ntime [uma das empresas que fundou a Movile] e meu sócio há mais de 20 anos, o Marcelo Sales, foi o primeiro que eu contei.
Pedi para fazer um churrasco no terraço dele com todos os sócios da Ntime —somos em seis. Contei e desabei de novo. Não entenderam direito, alguns estão entendendo até hoje. Mas ninguém criticou. Dei a sorte de achar sócios maravilhosos.

Monique Oliveira, cofundadora da Movile, startup brasileira dona do iFood que atingiu valor de mercado de US$ 1 bilhão
Monique Oliveira, cofundadora da Movile, startup brasileira dona do iFood que atingiu valor de mercado de US$ 1 bilhão - Zô Guimaraes /Folhapress

Já sofreu algum tipo de preconceito? Não deixo acontecer. Eu relutei em dar essa entrevista porque não queria passar a impressão que sou um empreendedor trans bem-sucedido. Eu era homem, branco, hétero e cisgênero [condição da pessoa cuja identidade de gênero corresponde ao gênero que lhe foi atribuído no nascimento], eu era o topo da cadeia de privilégios.

Só agora que consigo me dar conta de como era privilegiado. Hoje, às vezes me interrompem quando eu falo, algo que nunca faziam.

Como foi sua infância e adolescência? Passei a minha infância nos anos 1980 e com três anos eu já tinha noção que tinha algo diferente. Quando fui ficando mais velho, fui ficando clandestina. Não tinha referência, não sabia o que o tinha e não tinha com quem conversar. Tinha uma tia bailarina, a pessoa com quem eu tinha mais intimidade no mundo, mas ela faleceu de lúpus quando eu tinha sete anos —e eu internalizei ainda mais.

Na adolescência, nas festinhas, eu ficava sentada olhando minhas amigas. Sonhando que poderia ser eu usando salto pela primeira vez. Nunca saí pra azarar. Não queria viver, minha vida não me agradava. Foi traumático.

Sua relação com tecnologia começou nessa época? Com dez anos ganhei meu primeiro computador. Eu via em filmes pessoas dando comandos e a máquina obedecendo, Talvez aquilo tenha me atraído.
Na época pré-internet, era uma atividade solitária, pega um livro e vai estudando. Não era sociável e foi bom, porque evitava ter vida social. Quando fiz 15 anos, meu pai perguntou se eu queria ir para Disney, mas eu preferi um computador melhor. Decidi fazer engenharia de computação.

E como foi a faculdade? Sempre me dei bem com todo mundo. Mas sempre fui do grupo dos nerds, e isso era outro conflito que eu tinha. Eu não era nerd, era uma pessoa reclusa, que gostava de computador. Todas as interações sociais eram doloridas.

Eu vivia uma farsa. Com 19 anos dei meu primeiro beijo e transei pela primeira vez. Nunca tive atração sexual por homem, era uma questão bloqueada. Passei muito tempo achando que tinha defeito. Tinha muito medo de estar com homens gays, porque diziam que eles têm gaydar, uma espécie de radar para identificar outros gays. Morria de medo.

Qual a sua orientação sexual hoje? Não sinto atração por mulheres nem por homens, mas preciso ter alguma experiência bacana. Talvez aí eu descubra. Minha endocrinologista diz que pessoas trans não têm um lado sexual aflorado.

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