'Ricos podem fazer quarentena', diz redator da lei que tributa fortunas na Bolívia

Até agora não é público quem são os 152 bolivianos com patrimônio acima de US$ 4 milhões e vão que pagar o tributo

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Buenos Aires

O governo de esquerda do presidente Luis Arce decidiu criar um imposto anual sobre grandes fortunas na Bolívia. A medida lembra a decisão do governo argentino de Alberto Fernández, que também instituiu o chamado "imposto sobre grandes fortunas". A diferença entre os dois casos, porém, revela algo sobre as discrepâncias sociais e econômicas da região.

Na Argentina, trata-se de uma taxa que atinge aqueles que acumularam mais de 200 milhões de pesos argentinos (R$ 12,6 milhões, pelo câmbio oficial, quase a metade do valor do paralelo). Com isso, alcança a cerca de 12 mil pessoas no país.

Já no caso boliviano, o imposto anual a grandes fortunas alcançará aqueles que têm bens acima de US$ 4 milhões (ou R$ 22 milhões). Neste grupo, há apenas 152 pessoas na Bolívia.

Presidente boliviano Luis Arce
Presidente boliviano Luis Arce - Ricardo Carvallo - 30.dez.2020/AFP

"Na verdade isso é quase uma brincadeira, porque mostra que no nosso país até os ricos são pobres. Mesmo na média da região, US$ 4 milhões não seria uma grande fortuna", diz à Folha o analista político Raúl Peñaranda.

Por causa dessa discrepância na renda nacional, a primeira reação da classe média boliviana foi de temor. "Houve críticas à lei da parte de pessoas desinformadas que acreditavam que íamos taxar a classe média, aqueles que têm um carro, uma casa, e isso não é assim", diz à Folha o deputado Omar Yujra, redator da lei, eleito pelo do MAS (Movimento ao Socialismo), partido governista,

Segundo Yujra, a contribuição tributária dos bolivianos mais ricos era uma demanda antiga do partido, mas ganhou contornos de contribuição social com a pandemia do novo coronavírus.

"A ideia é seguir nosso projeto de campanha, que era o de instalar um sistema de impostos mais progressivo, eliminando carga tributária aos mais humildes e aumentando aos mais ricos. Isso tornou-se mais urgente quando sabemos que os mais pobres não podem trabalhar de casa ou fazer quarentena, e com isso perdem suas fontes de rendas. Enquanto os ricos podem fazer 'home office'", afirma o parlamentar.

Até agora, porém, ninguém sabe quem sãos os donos das fortunas passíveis de tributação. Desde que Luis Arce promulgou o decreto, que já começa a valer agora em janeiro, a lista dos 152 virou um segredo bem guardado na Bolívia. Há meios de comunicação trabalhando para descobrir quem são integrantes, mas o governo disse que manterá a relação de nomes sob sigilo.

Pela lógica, porém, é considerado quase certo que entre os listados estão os grandes investidores do agronegócio, principalmente da região de Santa Cruz de la Sierra (mais forte opositora ao governo), os empresários ligados a mineradoras e os donos de bancos.

A pandemia chegou à Bolívia num momento de crise institucional. Houve críticas à presidente interina por não ter conseguido administrar o combate ao vírus e os impactos na economia de um país que tem 66% dos trabalhadores na informalidade —enquanto lidava com um escândalo de corrupção, envolvendo a compra superfaturada de respiradores.

Neste contexto, o país foi duramente golpeado no primeiro pico da pandemia, entre julho e agosto. Ao todo, o país acumula 173.896 contágios e 9.379 mortes. Médicos e analistas independentes, porém, contestam esse número e creem que o impacto foi muito maior, pois a Bolívia está entre os países que menos testa na região e registrou muitas mortes em casa, sem que as pessoas tivessem sido diagnosticadas.

Depois de uma queda na curva em outubro e novembro, o país volta a registrar aumento no número de casos.

"O dinheiro arrecadado com esse imposto irá inteiramente ao combate à pandemia. A ideia é investir em nossos hospitais, em testes e na campanha para prever os novos casos", diz Yujra.

O parlamentar, no entanto, defende que o imposto se torne permanente para ajudar no que considera um resgate das políticas públicas que seu partido ofereceu ao país. Segundo ele, enquanto o MAS esteve fora do poder —entre a renúncia de Evo Morales, em 10 de novembro de 2019, e o retorno do partido ao poder com a eleição de Luis Arce, em 18 de outubro do ano seguinte— houve uma "desconstrução de tudo aquilo que havíamos construído" na gestão de Morales.

"Contraíram-se dívidas altas, houve uma retração no mercado interno, temos uma situação financeira muito complicada. Por isso a ideia de impostos progressivos é nossa proposta para sair dessa situação", afirma Yujra.

Os críticos ao imposto sobre fortunas, tanto na Bolívia quanto na Argentina, têm questionado suas limitações legais. Destacam que não é possível, por exemplo, tributar contribuintes que têm fortunas e propriedades não registradas em seu nome no exterior, que tenham contas em paraísos fiscais e que estejam vinculados a atividades delitivas internacionais.

Dizem ainda que o tributo pode até incentivar os ricos locais a transferir o patrimônio para países com tributação mais amigável.

"Essa lista também diz muito sobre um outro aspecto de nossa sociedade. Sabemos que há gente com fortuna muito maior do que US$ 4 milhões e que não estará na lista, nem paga impostos. São os narcotraficantes e os contrabandistas. Afinal, estão na economia informal", diz o analista Peñaranda .

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