Saiba quem é Ngozi Okonjo-Iweala, primeira mulher a chefiar a OMC

Guerra civil levou sua família à miséria; economista nigeriana foi nomeada diretora-geral da instituição nesta segunda (15)

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Bruxelas

A pior crise dos 25 anos de história da OMC (Organização Mundial do Comércio) é só mais uma na vida da economista Ngozi Okonjo-Iweala, 66, escolhida como a nova diretora-geral da entidade.

Nascida na Nigéria quando o país ainda era colônia britânica, precisou fugir com a família na guerra civil de Biafra, passou fome, dormiu no chão. Décadas depois, foi ameaçada de morte ao combater negócios ilegais de combustível e teve que negociar com sequestradores a libertação de sua mãe, octogenária.

No capítulo profissional, chegou aos EUA aos 18 anos para se graduar e doutorar em duas das mais disputadas universidades do mundo, Harvard e MIT. Foi três vezes ministra da maior e mais populosa nação negra do planeta e descascou abacaxis como o da dívida externa bilionária da Nigéria –abatida em negociação com o Clube de Paris.

A economista Okonjo-Iweala, que viveu mazelas da guerra civil de Biafra e foi ministra da Nigéria três vezes - Fabrice Coffrini-15.jul.20/AFP

Um arrocho fiscal, um programa radical de desregulamentação da economia da Nigéria, uma reforma bancária e outra previdenciária também estão no seu currículo, ao lado da privatização de diversos serviços nacionais.

A escolha como nova diretora-geral da OMC, que foi consumada em reunião dos países membros nesta segunda-feira (15), também passou por solavancos. A nigeriana deixou seis candidatos para trás e chegou à fase final da disputa, mas foi barrada pela gestão do ex-presidente americano Donald Trump, em outubro.

A seleção para a nova chefia ficou parada até o último dia 5, quando Joe Biden, o novo ocupante da Casa Branca, deu finalmente o sinal verde.

Quando ocupar seu escritório em Genebra, Okonjo-Iewala completa sua quarta vez como “a primeira a” superar algum marco importante. As três anteriores foram como primeira mulher a ocupar os ministérios nigerianos das Finanças (2003–2006; 2011–2015) e das Relações Exteriores (2006) e como primeira candidata negra a concorrer à presidência do Banco Mundial, em 2012.

Na OMC, a dose é tripla: será a primeira mulher, a primeira africana e a primeira negra.

Okonjo-Iweala é descrita por economistas e operadores que já trabalharam a seu lado como alguém “que enche a sala quando entra”, e isso não se deve a seus coloridos vestidos de Ankara (tecidos africanos estampados com o uso de cera) ou ao estilo próprio de arrumar os turbantes de mesmo padrão.

Ela tem liderança, luz própria e até certa sedução, afirmou um ex-colega, que preferiu não se identificar. No resumo de um analista brasileiro que já cruzou com a ex-ministra em corredores internacionais, Okonjo-Iewala tem “borogodó”.

No Banco Mundial, a especialista em economia do desenvolvimento começou como estagiária e chegou a diretora-administrativa, o segundo posto mais importante na hierarquia. Cotada para substituir Robert Zoellick como presidente, perdeu a vaga para Jim Yong Kim, mas deixou Washington com credenciais para rebater as críticas de que não tem experiência em comércio.

Na defesa de sua candidatura para o cargo atual, Okonjo-Iewala ressaltou que a organização precisa de “soluções políticas e profunda experiência em organizações multilaterais” —que ela possui.

Nunca ter trabalhado dentro da OMC pode até ser uma vantagem, na opinião de alguém que já trabalhou lá dentro, a canadense Debra Steger, primeira diretora do Conselho de Apelação da OMC (1995-2001): “Ela vai trazer ar fresco para uma OMC que se encontra numa encruzilhada”.

Segundo Steger, um dos grandes problemas em Genebra é justamente a dificuldade de sair da caixa. "Numa situação em que mudanças são inevitáveis, é preciso um líder criativo, com liderança, sem os vícios e prejuízos de quem já está lá dentro”.

“Além disso, e muito importante, ela é alguém com gravitas [peso, em latim] político, capaz de unir os países”, diz a ex-ministra do Comércio da Costa Rica (2010-2014), Anabel Gonzalez, que também já trabalhou na OMC: foi diretora da organização e concorreu à direção-geral no começo da década passada.

Na entidade, as decisões são tomadas por consenso, e a direção-geral tem que ser hábil para colocar os membros ao redor da mesa, engajá-los e trabalhar com eles para obter acordos, diz Gonzalez, que é analista sênior da PIIE (Instituto Peterson de Economia Internacional).

“O que é preciso é energia, entusiasmo, é ver oportunidades onde há desafios. E essa sou eu”, afirmou Okonjo-Iewala em julho a uma publicação africana.

Foi ainda mais longe ao ser apresentada como candidata, na sede da OMC: “Trago a combinação exata de habilidades e experiência necessárias para liderar esta organização no futuro: trabalhei no setor público e no privado, na sociedade civil internacional, em organizações multilaterais e tenho uma rede mundial de contatos”.

O discurso não revela modéstia, mas tem respaldo em outras fontes: ela já esteve por cinco anos consecutivos entre as 100 mulheres mais poderosas do mundo na lista da Forbes, foi apontada em 2014 como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela Time e em 2015, nomeada uma das 50 maiores líderes mundiais pela revista Fortune. Em 2020, foi escolhida pela Forbes "pessoa africana do ano", por sua chefia na Gavi, sigla em inglês para aliança global pela vacinação.

Okonjo-Iweala mal tinha completado 13 anos quando irrompeu a guerra civil nigeriana, também conhecida como Guerra de Biafra, que levou o caos ao sudeste do país após uma tentativa separatista da etnia ibo, da qual ela faz parte.

Seu pai, Chukwuka Okonjo, era o “eze” (rei) da família Obahai e um oficial da revolta da etnia ibo pela separação da Biafra. Com o avanço das tropas federais sob comando da etnia rival hauçá, a família de sete filhos teve que abandonar sua casa e fugir da cidade natal, Ogwashi-Ukwu.

“Meus pais perderam tudo, todas as suas economias. Às vezes, tínhamos que dormir no chão, em um bunker, em lugares diferentes. Aprendi a comer uma refeição por dia ou nenhuma refeição. Não tínhamos carne”, contou ela em entrevistas à BBC, em 2012, e ao Financial Times, em 2015.

Aos 15 anos, andou 10 quilômetros carregando nas costas a irmã de três anos, com malária e febre, até o médico que salvaria sua vida. Sua infância de escolas internacionais, aulas de balé e piano tinha ficado definitivamente para trás.

“Realmente testemunhei o que significava sofrer. Vi crianças morrendo ao meu redor.” O conflito em Biafra deixou de 500 mil a 2 milhões de civis mortos, grande parte deles por falta de comida. As experiências de guerra, contou a economista, lhe deram resistência.

Precisou dela para atravessar uma longa temporada de críticas, ao aceitar chefiar as Finanças na equipe do contestado presidente Goodluck Ebele Jonathan, num governo marcado por endividamento crescente, corrupção em grande escala e aumento na desigualdade de renda. A maior economia da África desabou com o colapso dos preços do petróleo, e a ex-ministra foi chamada de arrogante e incompetente.

Okonjo-Iweala resistiu, mostra a disputa recente pela direção-geral da OMC. Em julho, o queniano Patrick Lumumba, ativista global anticorrupção, preteriu sua conterrânea, Amina Muhammed, para apoiar a nigeriana.

Conseguiu ainda a proeza de ver um ex-inimigo político, o presidente Muhammadu Buhari, voltar atrás na indicação de Yonov Frederick Agah, vice-diretor-geral da organização, para apoiá-la. O motivo é “sua habilidade de negociação incomensurável”, segundo o analista político independente nigeriano Olalekan Adigun, que acompanha sua carreira há 15 anos.

À direita, mulher grisalha de roupa vermelha dá uma gargalhada; à esquerda, mulher de roupas africanas e óculos segura um livro não mão direita e um microfone na mão esquerda
A então presidente do FMI, Christine Lagarde (à dir. de vermelho), gargalha durante palestra da nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala em evento do fundo em 2017; Okonjo-Iweala fala de livro recém-lançado, em que conta o sequestro de sua mãe - Steve Jaffe - 15.10.2017/FMI/Reprodução

Seu ponto fraco, dizem os que conhecem a OMC por dentro, é o desconhecimento sobre os ritos e processos internos da instituição, algo que a diferencia radicalmente dos antecessores —o francês Pascal Lamy e o brasileiro Roberto Azevêdo. Para não se ver obrigada a comer na mão dos técnicos, ela terá que ser muito criteriosa na escolha dos assessores, afirma um diplomata.

Mas Okonjo-Iewala tem uma vantagem que os antecessores não tinham, diz Gonzalez: habilidade política e sucesso em negociações de alto nível entre governos e instituições. “Um diretor-geral da OMC não vai tratar apenas com ministros do Comércio. Precisa ser capaz de telefonar para um primeiro-ministro ou presidente e ser atendida, pois no final são eles que realmente decidem”, concorda a canadense Steger.

Steger e Gonzalez afirmam que a entidade ganha ao estrear uma mulher na direção, principalmente num momento de crise. Para elas, deve haver uma mudança grande no estilo de liderança e um maior engajamento entre os membros.

A própria Okonjo-Iweala, porém, relativiza a importância de se tornar a primeira mulher a dirigir a OMC. Questionada sobre o tema em julho, ela respondeu: “Será um ótimo sinal para mulheres e garotas, não só em meu país, mas em todo o mundo, mas eu defendo que a escolha do diretor-geral seja baseada em mérito. Deve ser escolhida a melhor pessoa para liderar uma instituição com tantos desafios. Se for mulher, ótimo. Se for africana, melhor ainda”.

A ex-ministra nigeriana, que se tornou também cidadã americana em 2019, é casada com o o neurocirurgião Ikemba Iweala, com quem tem uma filha e três filhos. Gosta de ler biografias e de nadar.

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