Empresas usam blockchain para afastar suspeitas sobre suas ações ESG

Tecnologia garante confiabilidade de práticas sustentáveis, como reciclagem e monitoramento de fornecedores

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Belo Horizonte

Desde que o ESG começou a ganhar tração no mundo dos negócios, pairam dúvidas se o compromisso das empresas é mesmo para valer ou apenas a estratégia marqueteira da vez.

A sigla, que faz referência aos princípios ambientais, sociais e de governança corporativa, virou sinônimo de práticas responsáveis, mas nem sempre é o que parece.

Para afastar qualquer suspeita sobre a autenticidade de suas iniciativas, as organizações estão recorrendo a uma espécie de cartório virtual: o blockchain.

A tecnologia, que ficou conhecida com a difusão das criptomoedas, é um sistema que garante a segurança e a transparência das informações, evitando que sofram alterações e sejam alvos de fraude.

É como um livro-caixa que registra dados digitalmente e de forma descentralizada: tudo que é inserido fica visível aos participantes da rede. Como não há um arquivo central para ser corrompido, o sistema é inviolável.

Em abril deste ano, a JBS inaugurou uma plataforma que estende a rastreabilidade de sua cadeia produtiva aos fornecedores de seus fornecedores. Na ferramenta digital, o produtor que negocia animais diretamente com o frigorífico informa a lista de seus provedores. O blockchain garante que as informações não serão alteradas, desviadas ou visualizadas por terceiros.

A plataforma avalia o desempenho socioambiental desses fornecedores indiretos, identificando registros de desmatamento, trabalho análogo à escravidão, uso de áreas embargadas e invasão a terras indígenas ou unidades de conservação.

Segundo a companhia, esses critérios de compra responsável são seguidos desde 2009, mas, até o momento, só se aplicam aos vendedores diretos.

"O que estamos criando agora é uma estratégia para estender o monitoramento aos elos anteriores da cadeia. Eu preciso me assegurar de que o boi que a gente comprou não pisou em nenhuma área desmatada ao longo de todo seu ciclo de vida”, explica Márcio Nappo, diretor de sustentabilidade da JBS.

No entanto, até 2025, irregularidades identificadas não impedirão que os fornecedores negociem com o frigorífico. Em vez de expulsar os parceiros, a empresa vai oferecer assessoria técnica para que as fazendas indiretas com problemas entrem em conformidade.

“A partir de 1º de janeiro de 2026 termina o período de transição e passa a ser compulsório. Nós só vamos fazer negócios com produtores que possuam a sua própria cadeia de fornecimento em linha com a nossa política”, diz.

A platforma foi criada meses depois que uma investigação da ONG britânica Global Witness mostrou que a JBS, além de outros grandes frigoríficos brasileiros, como Marfrig e Minerva, havia comprado gado de fazendas com desmatamento ilegal. Na época, as empresas negaram as irregularidades.

Para o diretor, a tecnologia é uma forma de afastar suspeitas sobre esse tipo de irregularidade.

"O blockchain tem essa característica importante de que as informações são invioláveis e rastreáveis, o que pode ser importante para uma auditoria ou para um investidor. Ele garante que os dados colocados pelo pecuarista não serão adulterados", explica.

Outra aplicação da tecnologia ocorre nos serviços de reciclagem. Desde 2010, a Política Nacional de Resíduos Sólidos prevê que fabricantes e revendedores são responsáveis pelo lixo gerado por suas mercadorias.

Nesse contexto, algumas empresas viram na compensação ambiental um caminho mais viável do que fazer a reciclagem por conta própria. A alternativa consiste em pagar a cooperativas de coleta seletiva pelo trabalho de reciclar uma quantidade equivalente às embalagens que são colocadas no mercado.

A Eureciclo é um dos negócios que intermedeiam essa transação. Com o uso do blockchain, a startup assegura a retirada dos resíduos de circulação por meio das notas fiscais de reciclagem, que são transformadas em certificados comercializáveis.

“Cada tonelada de resíduos que conseguimos certificar origem e destino, a gente transforma num ativo digital e vende para empresas. Isso é o que ficou sendo chamado de créditos de reciclagem, em analogia ao mercado de créditos de carbono”, explica Thiago Pinto, diretor executivo da eureciclo, que tem na lista de clientes companhias como 3 Corações, Minalba, Vigor, Hering, Arezzo e Azul.

Para essas empresas, a vantagem é poder comprovar que uma quantidade de resíduos equivalentes aos seus foi reaproveitada, tanto em peso como em tipo de material.

Na visão do diretor, o blockchain também é uma forma de certificar que as organizações realmente estão botando suas iniciativas ESG em prática, e não apenas se promovendo.

“A gente utiliza a tecnologia como uma ferramenta de transparência, para que os stakeholders consigam comprovar quem realmente faz e quem não faz”, diz.

Após a venda do crédito, a Eureciclo fica com uma taxa e o restante do valor é passado para operadores e cooperativas pelo serviço de logística reversa.

Segundo Thiago, essa remuneração acaba tendo um impacto social, visto que a maior parte dos trabalhadores são pessoas pobres e em situação de vulnerabilidade.

Em 2020, a startup compensou mais de 106 mil toneladas de resíduos de embalagens, gerando cerca de R$ 5,8 milhões para empresas e operadores de reciclagem do país.

“Para a cooperativa é mais uma renda, que agrega no valor/hora do cooperado e na nossa receita. Do lado das empresas, é uma forma de fazer compensação ambiental”, diz Marcos Nascimento, diretor da Coopercaps, uma das cooperativas parceiras da Eureciclo em São Paulo.

Na visão dele, os certificados de reciclagem são uma boa alternativa para o problema dos resíduos, mas não necessariamente a melhor estratégia quando se fala em educação ambiental.

“O certo mesmo seria a empresa de fato se responsabilizar pela embalagem que coloca no meio ambiente. Mas, infelizmente, a gente sabe que isso é quase impossível, então o jeito é tentar amenizar”, afirma.​

Para Alan Kardec, diretor de operações da Uniweeks, as organizações devem tomar alguns cuidados antes de simplesmente adotar a tecnologia.

"Primeiro é importante saber se o projeto requer a utilização de uma rede blockchain. Muito se fala na capacidade e na inovatividade que ela proporciona. Contudo, a tecnologia, assim como o próprio mercado blockchain, ainda são incipientes", afirma.

Segundo Kardec, experimentações com blockchain estão ocorrendo no mercado de modo geral, e as iniciativas corporativas relacionadas ao ESG não ficam de fora. No entanto, é preciso considerar o valor e os impactos de um projeto, o que pode apontar para a necessidade ou não do uso da tecnologia.

Outro aspecto a ser levado em consideração, na visão do diretor, é se a estrutura da rede será pública ou privada, visto que o uso de dados sensíveis precisa considerar a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) brasileira.

"O blockchain não pode ser visto apenas como um 'desintermediador', mas como uma arquitetura que, no curto prazo, pode reduzir custos e gerar grande valor estratégico", conclui.

Entenda o blockchain

  • O que é?

    Tradução literal para “corrente de blocos”, blockchain é uma tecnologia que funciona como uma espécie de cartório ou livro-caixa de transações.

  • Segurança

    A tecnologia evita que os dados inseridos sofram qualquer tipo de alteração ou violação ao longo de sua existência.

  • Descentralização

    Informações em blockchain são armazenadas numa rede de computadores, sem que exista um arquivo central ou um “dono” dos dados.

  • Transparência

    Todo participante da rede pode checar a autenticidade da corrente. Protocolos de consenso são usados ​​para validar um novo bloco com outros participantes antes que ele possa ser adicionado à cadeia.

  • Como se aplica à agenda ESG das empresas

    É usado para registrar e garantir a confiabilidade de práticas sustentáveis, como reciclagem de materiais, compra de créditos de carbono e monitoramento da cadeia de fornecedores.

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