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Para exaltar Bolsonaro, vídeo ignora que resultado da transposição é obra de diversas gestões

Diferentemente do que afirma gravação, projeto no rio São Francisco já atravessou quatro governos e ainda não foi concluído

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São Paulo

É enganoso o conteúdo de um vídeo produzido pelo Jornal da Cidade Online sobre a transposição do rio São Francisco e a participação do governo Jair Bolsonaro (sem partido) na execução das obras. O vídeo, verificado pelo Projeto Comprova, exalta o mérito do atual governo nos resultados do empreendimento e dá a entender que apenas por conta desta gestão o projeto, executado desde 2007, passou a caminhar para uma conclusão, o que não é verdade.

A obra ocorre desde o segundo mandato de Lula (PT) e atravessou os governos Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB), seguindo na gestão Bolsonaro. Michel Temer, em 2017, inaugurou o começo do Eixo Leste. Em 2020, Bolsonaro deu início ao funcionamento de uma parte do Eixo Norte. A obra segue em curso, com 97,58% de conclusão. Quando Bolsonaro assumiu, a execução física já estava acima de 90%, como mostra esta verificação do Comprova.

A possibilidade de canalizar as águas do São Francisco foi pensada ainda no Império. Mas, diferentemente do que sugere o argumento do vídeo de que “Bolsonaro consegue o que muitos tentaram por mais de um século e não conseguiram”, o projeto executado não é o mesmo da época de D. Pedro II.

Bolsonaro está de camisa azul; ele está de perfil direito, sorrindo e fazendo joinha com as mãos; ao fundo, fluxo de água da transposição e pessoas
Bolsonaro em trecho da transposição na pernambucana Sertânia; quando ele assumiu, mais de 90% das obras já estavam executadas - Adalberto Marques - 18.fev.2021/MDR

Outro equívoco do vídeo é afirmar que a transposição pode “acabar de vez com a seca no Nordeste”. Ainda que seja comum nos discursos relativos à obra a menção a um suposto “fim da seca”, a ideia é inadequada, pois a obra pode garantir segurança hídrica para que os habitantes da região possam conviver com o semiárido, mas, como a estiagem é um fenômeno natural, não é possível dar um fim a ela. Tampouco a transposição, que beneficia 4 dos 10 estados do semiárido do Brasil, tem essa pretensão.

Também não é possível afirmar categoricamente, como faz o vídeo, que Bolsonaro “acabou com a máfia dos carros-pipa no Nordeste”. Na prática, é plausível dizer que a obra ajuda a reduzir a dependência desse tipo de medida. A Operação Carro-Pipa, cujo intuito é auxiliar populações atingidas pela falta de água, desde 1998, é mantida pelo próprio Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR). De 99 municípios da Paraíba, Pernambuco e Ceará já beneficiados com a transposição, 46 anteriormente dependiam integralmente de carros-pipa.

Como verificamos?

As informações que constam no vídeo foram sistematizadas e a reportagem, inicialmente, procurou o MDR (Ministério do Desenvolvimento Regional) para saber sobre o andamento das obras da Transposição do rio São Francisco, os investimentos feitos no atual governo e as entregas asseguradas ou previstas para a gestão de Jair Bolsonaro. Não houve resposta, então foi recuperado um email enviado entre o final de maio e o início de junho, no contexto de outra verificação, com dados referentes ao mês de abril.

Em seguida, foram consultadas checagens anteriores publicadas pelo Comprova sobre o mesmo assunto (aqui e aqui) e reportagens que tratavam de obras deste projeto.

Também foi feita uma busca em documentos históricos no setor imperial da Biblioteca Nacional, digitalizados e disponibilizados por meio de consulta na Hemeroteca Digital, a fim de encontrar registros anteriores sobre a intenção de se canalizar as águas do rio São Francisco para combater a seca no Nordeste desde Dom Pedro II, como diz o vídeo.

Por fim, foram acionadas por email e por telefone a Secretaria de Infraestrutura, dos Recursos Hídricos e do Meio Ambiente da Paraíba, a Secretaria de Recursos Hídricos do Ceará, a Secretaria de Infraestrutura e Recursos Hídricos de Pernambuco e a Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Rio Grande do Norte – todos estados incluídos no projeto –, para saber quantas e quais as cidades beneficiadas pela transposição, bem como a dependência delas de carros-pipa.

A reportagem também entrevistou, por email, a representante da Abes (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental) para a região Nordeste para analisar o propósito e os resultados do que já foi entregue da transposição. Por fim, a reportagem buscou o Jornal da Cidade Online, site que publicou o vídeo, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.

Verificação

Projeto histórico

O vídeo verificado afirma que “Bolsonaro consegue o que muitos tentaram por mais de um século e não conseguiram” e faz uma retrospectiva até o Império, indicando que Dom Pedro II teria tentado “convencer o parlamento a abraçar a causa [de garantir água para as regiões secas], mas não convenceu as lideranças das províncias nordestinas”.

Em 2017, ao inaugurar um trecho do Eixo Leste, o então presidente Michel Temer também destacou que a obra era pensada desde o Império, mas isso não significa que o projeto executado a partir do segundo governo Lula (PT) é o mesmo idealizado há mais de 160 anos.

O Brasil sofre com as secas há séculos e, em 1877, um desses episódios, conhecido como A Grande Seca, conforme registro em documentos históricos, motivou o imperador Dom Pedro II a montar uma comissão imperial para pensar soluções para enfrentar o problema.

Sobre a Grande Seca, há uma série de documentos e fotografias na Biblioteca Nacional, entre eles um mapa das regiões afetadas, feito pelo engenheiro André Rebouças, em 1878. Antes disso, entre o final da década de 1840 e o início dos anos 1850, Dom Pedro II encomendou ao engenheiro Henrique Guilherme Halfeld um relatório sobre a exploração do rio São Francisco. O documento, de mais de 100 páginas, foi publicado em 1860 e inclui mapas, textos e planilhas sobre, por exemplo, como navegar pelo rio.

Halfeld também menciona a primeira proposta de canalizar as águas do São Francisco para outros rios da região. A canalização foi concebida em 1847 pelo então intendente da comarca do Crato, no Ceará, Marcos Antônio de Macedo.

Um artigo publicado no portal Brasiliana Iconográfica afirma que o projeto nunca saiu do papel, nem mesmo após a criação da comissão imperial, depois da seca de 1877, “principalmente por conta das limitações técnicas da época”.

Em 1886, mesmo ano em que foi produzido um mapa hidrográfico para navegação e irrigação pelo São Francisco, os estudos do engenheiro Teodoro Sampaio, integrante da Comissão Hidráulica do Império, complementaram os trabalhos de Halfeld, mas a obra não foi feita, apenas a retirada de algumas pedras do leito do rio, ainda no final dos anos 1800. O projeto voltou a ser lembrado em 1909 e 1919, mas foi arquivado.

Um relatório da autoria de César Nunes de Castro, especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, publicado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), em fevereiro de 2011, aponta que a ideia da transposição do São Francisco voltou a ser estudada durante o governo de Getúlio Vargas, com a criação em 1943 do Departamento Nacional de Obras contra as Secas —em 1981, os técnicos da área elaboraram um novo plano, também arquivado.

Já em 1993, durante o governo de Itamar Franco, o então ministro da Integração Nacional, Aluísio Alves, propôs a construção de um canal em Cabrobó (PE) para retirar água do São Francisco e canalizá-la, beneficiando o Ceará e o Rio Grande do Norte. A proposta era iniciar o projeto em 1994, mas ele foi arquivado novamente após parecer contrário do Tribunal de Contas da União.

Em 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), também segundo o relatório, duas novas versões do projeto foram feitas, mas ambas foram arquivadas: a primeira de autoria da Secretaria Especial de Políticas Regionais, do Ministério da Integração Nacional, e a segunda, da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco. A transposição só começou a sair do papel no governo Lula, quando a incumbência de executar a obra foi entregue ao então ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes.

Fim da seca

O vídeo verificado enfatiza também que a transposição é “outra fortíssima candidata a ser uma das promessas para a próxima eleição até acabar de vez com a seca no Nordeste”. Tal afirmação também é incorreta, pois, ainda que historicamente seja comum nos discursos relativos à obra a menção a uma suposta possibilidade de “fim da seca”, o adequado é falar de convivência com o semiárido, tendo em vista que a estiagem é um fenômeno natural, ao qual não é possível dar um fim, mas sim gerar condições para que a população possa conviver com essas características.

O fenômeno da seca é secular e provocado por distintos fatores. Envolve as irregularidades das chuvas nas regiões afetadas, as temperaturas elevadas e o alto índice de evaporação nos territórios semiáridos. A transposição pode garantir o abastecimento permanente da população, mas não tem pretensão de reverter essas condições naturais.

Ainda que fosse possível supor que a transposição pode “acabar com seca no Nordeste”, é preciso considerar que embora, de fato, seja a maior obra estruturante para garantir segurança hídrica no país atualmente, e tenha aspiração de resultados abrangentes, ela serve à população específica de quatro (Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco) dos dez estados do semiárido brasileiro (que ainda inclui Maranhão, Piauí, Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais). Logo, embora atenda a um público significativo, não abrange o Nordeste inteiro.

No total, segundo o governo federal, o semiárido brasileiro ocupa 12% do território nacional e abriga cerca de 28 milhões de habitantes nos 10 estados. A transposição, quando concluída, deverá garantir, segundo projeção do Governo, segurança hídrica a 12 milhões de pessoas.

Além disso, dentre os propósitos do Rima (Relatório de Impacto Ambiental) da transposição de 2004, documento público no qual constam as características e objetivos do projeto, produzido pelo então Ministério da Integração Nacional (hoje Ministério do Desenvolvimento Regional), não há menção a possibilidade de “acabar com a seca no Nordeste”. Consta “assegurar a oferta de água para uma população e uma região que sofre com a escassez e a irregularidade das chuvas”.

O documento indica ainda que os objetivos básicos do projeto são:

  • aumentar a oferta de água, com garantia de atendimento ao semiárido;
  • fornecer água de forma complementar para açudes existentes na região, viabilizando melhor gestão da água;
  • reduzir as diferenças regionais causadas pela oferta desigual da água entre bacias e populações.

À reportagem, a diretora da Abes para a região Nordeste, engenheira sanitarista e ambiental Vanessa Britto Cardoso, explicou que, “de fato, a realidade para atendimento ao abastecimento humano das populações do semiárido situadas fora dos limites de sua bacia hidrográfica é bastante crítica e a segurança hídrica é condição indispensável para o desenvolvimento social e econômico”.

Ela acrescenta que, para os estados receptores das águas, “o que se espera é que haja, sim, garantia de justiça hídrica, social, ambiental e econômica. Que as cidades, principalmente as que se situam às margens dos rios que receberão as águas, implementem a política de saneamento básico, em conformidade com as legislações vigentes, e que as águas sejam prioritariamente para o consumo humano e dessedentação animal”.

Um dos impasses da transposição é justamente a finalidade do uso, além do modelo de gestão pelos estados que utilizam ou vão utilizar o recurso. A representante da Abes reforça: “Em algumas das nossas discussões, entendemos que há impasses para o pleno funcionamento da transposição, tais como a definição do seu modelo de gestão, a busca pelos investimentos necessários para as obras complementares e o equacionamento do pagamento pelos altos custos operacionais dos canais”.

Outro ponto a ser destacado é que com a transposição não se pretende encher completamente com as águas do São Francisco todos os açudes do percurso, conforme explicou em 2019 o gerente regional da Companhia de Água e Esgotos da Paraíba, Ronaldo Meneses, à imprensa da Paraíba, e em 2021, o secretário de Recursos Hídricos do Ceará, Francisco Teixeira, à do Ceará.

Portanto, a obra também não tem capacidade e nem o objetivo de encher integralmente os reservatórios incluídos no caminho, mas sim garantir que eles não entrem no volume morto e, com o acesso à água transportada, a população possa ter segurança hídrica.

Caminhões-pipa

O vídeo verificado também faz menção ao fim da “máfia dos carros-pipa no sertão” e destaca que “equipes acabaram ainda com o monopólio da água por empresários locais proprietários de frotas de caminhões-pipa que durante décadas foi (sic) a única fonte de água para milhões de nordestinos”.

De fato, a dependência dos chamados caminhões-pipa no semiárido brasileiro é um problema criticado historicamente, e obras estruturantes como a Transposição do São Francisco tendem a reduzir ou eliminar esse vínculo.

No Brasil, o governo federal realiza desde 1998, por meio do Ministério da Defesa, a Operação Carro-Pipa. Nela o Ministério da Defesa, por intermédio do Comando do Exército, contrata pipeiros e outros serviços terceirizados de mão de obra para a operação. Já os governos estaduais, por meio dos órgãos de defesa civil, devem realizar a distribuição de água potável em cidades ou áreas não atendidas pelo Comando do Exército.

Hoje, de quatro estados —Paraíba, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte—, somente o último ainda não recebe as águas da transposição. Conforme informações repassadas pelas secretarias de estado da Paraíba, de Pernambuco e do Ceará, dos 99 municípios que já são beneficiados com a transposição, 46 anteriormente dependiam integralmente de carros-pipa.

A Secretaria de Estado do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos do Rio Grande do Norte também foi acionada, mas não respondeu até a publicação da verificação.

Por que investigamos?

Em sua quarta fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos sobre as políticas públicas do governo federal ou sobre a pandemia que tenham viralizado nas redes sociais. Como uma obra que se arrastou por vários governos, a paternidade sobre a transposição tem sido disputada pelo menos desde 2017, quando o então presidente Temer inaugurou oficialmente o Eixo Leste e este foi, horas depois, visitado pelos ex-presidentes Lula e Dilma, que fizeram uma “inauguração simbólica” no local.

Com a posse de Bolsonaro, seus apoiadores também passaram a reivindicar a participação dele no projeto, principalmente após ele acionar a comporta que levou as águas para o Ceará, na cidade de Penaforte, em junho de 2020. Desde então, várias informações incorretas têm circulado sobre o papel do atual governo na obra. O tema voltou a ganhar força depois que Bolsonaro inaugurou em maio um trecho do Canal do Sertão, obra complementar da transposição em Alagoas.

O vídeo verificado teve 110.483 visualizações até a manhã desta quarta-feira (14), no YouTube, além de outros 16.971 compartilhamentos do texto publicado no site.

O Comprova já mostrou que postagens inflavam a responsabilidade da atual gestão no andamento das obras; que não havia provas de que o rompimento ocorrido na barragem inaugurada por Bolsonaro fosse fruto de sabotagem; e que obras da transposição atribuídas em vídeo a Bolsonaro em Cabrobó foram inauguradas por Dilma e Temer.

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; ou ainda aquele que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

O Comprova fez esta verificação baseado em informações disponíveis no dia 14 de julho de 2021.

A investigação desse conteúdo foi feita por Correio e Diário do Nordeste e publicada na quarta-feira (14) pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 33 veículos na checagem de conteúdos sobre coronavírus e políticas públicas. Foi verificada por Folha, Correio de Carajás, Jornal do Commercio, Correio Braziliense, BandNews, A Gazeta e Estadão.

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