Na contramão mundial, Brasil reduz diplomados em áreas estratégicas

Em universidades públicas, fatia de formandos caiu, de 2009 a 2019, em áreas como engenharia, agricultura e saúde

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São Paulo

Na contramão da tendência mundial, o número de diplomados por universidades brasileiras em boa parte das áreas conhecidas como STEM (Ciências, Engenharia, Matemática e Computação) caiu ao longo de uma década. De 67 mil formados nessa área em 2009, o número despencou para 60 mil em 2019.

Esses campos são estratégicos tanto para o mercado de trabalho quanto para inovações científicas, e a queda do número de especializados prejudica ainda mais o país na corrida pela economia do futuro.

Dezenas de jovens sobem passarela azul
Jovens se direcionam às salas de aula para vestibular 2022 da Unicamp, em Campinas - Antonio Scarpinetti/SEC Unicamp

O ponto fora da curva foi a área que inclui a engenharia, em que o número de formados triplicou no período.

O levantamento, feito pela consultoria IDados a partir de dados do Inep, mostra que as universidades públicas, especialmente, perderam participação no número de formados em áreas prioritárias para o mercado de trabalho, apesar de um aumento no total de brasileiros com ensino superior na maior parte das carreiras.

Em 6 de 8 setores de conhecimento analisados, elas tiveram queda no percentual de diplomados na comparação com as instituições privadas.

Na comparação entre 2009 e 2019, na área de saúde e bem-estar, por exemplo, o percentual de formados nessas instituições caiu de 20,7% para 16,4%, enquanto a fatia do setor privado subiu de 79,3% para 83,6%. Na de agricultura, silvicultura, pesca e veterinária, a universidade pública perdeu quase 12 pontos percentuais, de 59,2% para 47,8%.

Mesmo quando ocorreu um aumento significativo no número de diplomados —como os da área de engenharia, produção e construção, que passaram de 21,4 mil para 61,1 mil no período—, a fatia das instituições públicas caiu de 38,2% para 24,5%.

O desempenho errante do país em formar profissionais voltados principalmente para ciência e computação vai na contramão do resto do mundo. Um estudo recente, da colunista da Folha Cecilia Machado, em parceria com os pesquisadores Laísa Rachter, Fábio Schanaider e Mariana Stussi, usou diferentes bases de dados para mapear os trabalhadores STEM no Brasil.

No terceiro trimestre do ano passado, o número de trabalhadores em funções STEM era de 1,5 milhão, enquanto os demais passavam de 7,6 milhões. Enquanto isso, na economia norte-americana, 10 milhões (7%) ocupam essas funções.

Segundo o pesquisador do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas) Fernando Veloso, é visível o esforço que os países desenvolvidos têm feito para aumentar investimentos na formação de trabalhadores do futuro.

"Há uma tentativa de preparar as futuras gerações e também sobre como requalificar quem já está no mercado de trabalho. No Brasil, a experiência mais recente foi com o Pronatec, mas que teve resultados muito abaixo das expectativas."

Ele destaca que os programas em que o governo tenta determinar as áreas de formação costumam ter um desempenho pior do que aqueles em que há um diálogo com as empresas para facilitar a empregabilidade do aluno no futuro em funções com demanda mais clara.

Veloso também considera que há, muitas vezes, um excesso de academicismo nas instituições públicas de ensino superior. "O ensino, muitas vezes, é mais voltado para pesquisas e com menos conexão com o mercado de trabalho. Uma alternativa, como o que acontece nas faculdades comunitárias norte-americanas, seria tentar tornar a universidade pública mais flexível, sem perder a qualidade."

"A gente ouve muito falar na baixa produtividade do trabalhador brasileiro, então, poderia haver uma orientação mais clara por parte do governo federal para avançarmos nessas áreas-chave", diz o pesquisador Guilherme Hirata, da IDados.

Já Amauri Fragoso de Medeiros, do Andes-SN (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior) e professor da Universidade Federal de Campina Grande (PB), avalia que gerar conhecimento apenas tendo em vista suprir o mercado de trabalho é uma questão falaciosa.

"O mercado é apenas uma célula da sociedade, não é a sociedade inteira. Além disso, o que se observa é que as universidades privadas pegam as camadas mais pobres da população, na ilusão de comprar com a educação uma melhora na qualidade de vida que não veio."

Para Claudia Massei, executiva da Siemens na Alemanha, além de formar mais profissionais voltados para as profissões do futuro, o Brasil precisa desenvolver um mercado de trabalho que absorva mais profissionais após formados.

"Do lado privado, muitas empresas de grande porte que estão no Brasil não têm centros de pesquisa no país. Na política pública, falta estratégia para definir o profissional que será demandado em cinco ou dez anos."

Sobre a perspectiva de aumento na oferta de vagas para as áreas STEM, Elizabeth Guedes, da Anup (Associação Nacional das Universidades Particulares), que também é irmã do ministro da Economia, Paulo Guedes, avalia que isso deve se dar de forma contundente nos próximos anos.

"O futuro social e econômico do Brasil depende da formação de profissionais preparados para enfrentar os novos desafios de um mundo onde as cadeias de valor estão interligadas", diz ela.

Universidade pública não consegue acompanhar o ritmo das privadas

A universidade pública não conseguiu acompanhar o ritmo das particulares, mesmo quando elas conseguiram um aumento no número de vagas, diz Hirata, da IDados.

"A depender da área de formação, a redução foi considerável na proporção dos que saem da universidade pública. Já a expansão de universidades privadas foi fomentada por programas de financiamento e descontos de mensalidades, o que facilitou bastante o aumento de diplomas."

Segundo Adriano Senkevics, pesquisador do Inep e doutor em educação pela USP (Universidade de São Paulo), o período de 2009 até 2019 compreende dois momentos opostos para o ensino superior: o que vai até 2015 é de um novo olhar para universidade pública, por meio do Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), e de apoio ao ensino privado, com Fies e ProUni.

"Ao longo da expansão do ensino superior, no entanto, o setor público perdeu espaço, enquanto o privado cresceu em ritmo forte, absorvendo uma massa de jovens maior ao longo do tempo e aumentando sua participação relativa", diz.

Ele pondera que pesa nessa diferença de desempenho a politica do setor privado de oferta de cursos mais baratos e voltados para o mercado de trabalho, enquanto o público tem carreiras mais caras e que dependem de professores mais especializados. "A diferença qualitativa dos dois sistemas também impõe ritmos de expansão distintos."

A partir de 2015, quando o país entrou em recessão, ambos os sistemas entraram em uma fase amarga de estagnação e de perda de recursos. Do lado das universidades públicas, o período foi de recursos minguados, cenário que persiste até hoje.

No fim do ano passado, uma reportagem do jornal O Globo mostrou, a partir de dados do Painel do Orçamento Federal, que os recursos para gastos discricionários (usados para pagar água, luz, bolsas, insumos para pesquisas, entre outros itens) estavam em 2021 no nível mais baixo desde 2004, mesmo com o dobro de alunos nas universidades públicas.

No caso das privadas, o freio na expansão se deu pela dificuldade que parte dos alunos tem tido para pagar as mensalidades. "O setor privado sentiu essa queda econômica, com a crise de 2015 e 2016 e agora com a pandemia, e só tem respirado por meio de cursos EAD como estratégia de redução de custos", diz Senkevics.

De acordo com o Censo da educação superior, de 2020, havia 2.457 instituições de educação superior no Brasil. Dessas, 2.153 (87,6%) eram privadas e 304 (12,4%), públicas. E 3 em cada 4 estudantes estavam em centros particulares.

Massei, da Siemens, concorda que a universidade pública, pela melhor qualidade de ensino, costuma formar profissionais qualificados para trabalhar diferentes áreas, enquanto boa parte do aumento expressivo nos alunos de cursos particulares se deveu por questões comerciais.

"No Brasil, a maior parte do sistema privado de ensino superior acaba sendo guiada pelo lucro, e o sistema público sempre depende muito do orçamento e da orientação governamental."

Medeiros, do Andes-SN, diz que, embora as universidades tenham autonomia para gerir o número de vagas e de cursos, essa liberdade é limitada pela falta de recursos.

"Nos últimos anos, apesar do Reuni, houve uma clara virada de investimentos do governo no setor privado, o que explica boa parte da perda de participação da universidade pública em alguns setores."

O porta-voz do Andes também destaca o papel fundamental que as instituições públicas têm no desenvolvimento de pesquisas, bem a frente do setor privado.

A ligação das instituições particulares com o mercado de trabalho faz com que elas atendam de forma mais rápida às demandas por determinadas áreas de formação, rebate Elizabeth Guedes, presidente da Anup (Associação Nacional das Universidades Particulares).

"Teoricamente, as velocidades deveriam ser iguais, uma vez que gozamos da mesma autonomia. Mas sempre olhamos as vagas atuais e as tendências para o futuro, considerando-se que as profissões estão mudando de forma contínua e não suprir essa demanda é destinar nosso aluno ao desemprego", diz.

Questionado sobre a perda de participação das universidades públicas no número de formados, as dificuldades de abertura de vagas e cursos e a redução na verba das universidades, o MEC (Ministério da Educação) não havia respondido os questionamentos até a publicação desta reportagem.

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