Descrição de chapéu Financial Times

Ben & Jerry's x Unilever: como a política em Israel tornou a aquisição da sorveteria um pesadelo legal

Protestos de ativistas nos EUA fizeram fabricante de sorvetes interromper operação israelense, o que fere regras da compradora

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Judith Evans
Londres | Financial Times

Num dia em maio do ano passado, centenas de pessoas que marchavam pela pitoresca cidade de Burlington, em Vermont (nordeste dos EUA), pararam para gritar na frente da sorveteria Ben & Jerry's Scoop Shop. "A única palavra que gritavam era 'vergonha'", diz Wafic Faour, veterano ativista do grupo local Vermontanos por Justiça na Palestina.

A manifestação foi para comemorar um acontecimento distante: o deslocamento de centenas de milhares de palestinos durante a criação do Estado de Israel em 1948, conhecido pelos palestinos como Nakba, ou "catástrofe". Para Faour, a marcha marcou um ponto de virada numa campanha para resolver um dos conflitos mais duradouros do mundo por meio da empresa mais famosa do estado de Vermont.

Dois meses depois, a Ben & Jerry's anunciou que pretendia encerrar seu acordo de franquia em Israel no final de 2022, como forma de impedir que seu produto fosse vendido em territórios palestinos ocupados. A campanha de Faour argumentou que isso tornava a fábrica de sorvetes cúmplice de uma ocupação considerada ilegal sob o direito internacional.

Sorvetes  da Ben & Jerry's em geladeira de loja nos Estados Unidos
Sorvetes da Ben & Jerry's em geladeira de loja nos Estados Unidos - evin Dietsch - 20.mai.2021/AFP

Mas o anúncio colocou a marca em desacordo com sua controladora, a Unilever –e com o governo de Israel, que a ameaçou com "graves consequências". Oponentes, incluindo o ministro da Economia de Israel, se filmaram jogando potes de Ben & Jerry's no lixo. Grupos judeus acusaram a Ben & Jerry's e a Unilever de criticar Israel.

Mais de um ano depois, o conflito continua. O conselho independente da Ben & Jerry's levou a Unilever ao tribunal pela tentativa de continuar as vendas em Israel. No final de setembro, expandiu sua ação legal para atingir a Unilever em Londres, bem como sua subsidiária nos EUA. A Unilever tem até o início de novembro para responder às últimas acusações na Justiça, enquanto a disputa pode manchar o mandato do próximo executivo-chefe da Unilever, depois que Alan Jope anunciou que se aposentará no próximo ano.

A luta lança uma multinacional que há muito enfatiza seu compromisso com a ética e a sustentabilidade contra uma subsidiária com voz ainda mais alta. Também levanta questões sobre os limites da ética corporativa à medida que as empresas são pressionadas a se posicionar em questões públicas delicadas, desde as mudanças climáticas até o movimento Vidas Negras Importam.

Outros que foram presas da atmosfera cada vez mais febril incluem a Disney, cuja decisão inicial de não se posicionar sobre o chamado projeto de lei "Não Diga Gay" da Flórida foi revertida após a indignação dos funcionários. A H&M e a Nike enfrentaram uma reação na China no ano passado, depois de expressarem preocupação sobre relatos de trabalho forçado na região de Xinjiang.

Mas Joanne Ciulla, diretora do Instituto para Liderança Ética da faculdade de administração em Rutgers, diz que esse caso é incomum em um aspecto: "Você raramente tem empresa ética contra empresa ética, discordando sobre o que é ético... as empresas têm que escolher suas batalhas, e parece que esta é uma que a [Unilever] não quer lutar".

Buscando a euforia

A Ben & Jerry's foi fundada em 1978 em um posto de gasolina reformado em Burlington, em Vermont, estado com forte histórico de ativismo liberal. Os fundadores, Ben Cohen e Jerry Greenfield, atingiram a maioridade na década de 1960, parte de "uma diáspora de ‘baby boomers’ que convergiram para Burlington em busca de euforia", segundo a história da empresa por Brad Edmondson, "Ice Cream Social".

A dupla de cabeludos dormiu na loja durante o primeiro verão de funcionamento, experimentando sorvetes com pedaços de doces, nozes, biscoitos e outros alimentos jogados na mistura. As criações resultantes eram irregulares, excêntricas e extremamente populares: as vendas dispararam de menos de US$ 1 milhão em 1982 para mais de US$ 58 milhões sete anos depois.

À medida que a empresa crescia, desenvolveu uma missão em três partes, abrangendo sorvete, crescimento econômico sustentável e melhorias sociais. Ela fez campanha em questões tão amplas quanto as mudanças climáticas e o hormônio do crescimento bovino. Em 1988, começou a vender "Peace Pops" (picolés da paz) como parte de uma tentativa de desviar 1% do orçamento de defesa dos EUA para intercâmbios culturais e econômicos com a União Soviética.

No final da década de 1990, em meio à consolidação no setor de sorvetes e com o preço das ações da Ben & Jerry's caindo, seu conselho optou pela venda, apesar do ceticismo dos fundadores. Em 2000, a Ben & Jerry's foi vendida para a Unilever por US$ 326 milhões. Na época, Cohen disse que preferia que a marca permanecesse independente, mas citou a música do Grateful Dead "Scarlet Begonias": "De vez em quando lhe mostram a luz nos lugares mais estranhos, se você olhar direito".

Vital para seu apoio foi um acordo para estabelecer um conselho independente para proteger a missão social e a integridade da marca. Apesar de ser dona do grupo e escolher seu executivo-chefe, a Unilever escolheria apenas uma minoria de diretores, com os membros independentes do conselho indicando seus próprios sucessores.

"É um acordo realmente incomum. A maioria das empresas quando vende, vende em todos os sentidos", diz o consultor de marketing Peter Field. Outra marca da Unilever, Seventh Generation, tem seu próprio conselho de missão social, mas sem a mesma independência.

A Ben & Jerry's foi uma das últimas marcas da Unilever a adicionar o logotipo do grupo em suas embalagens. Mas com acesso à vasta rede de distribuição global do grupo de bens de consumo, a marca se expandiu rapidamente, tornando-se uma das maiores da Unilever. A Euromonitor projeta que trará US$ 2,2 bilhões em vendas este ano, representando 2,6% do mercado global de sorvetes –acima do 1,4% de 2013.

"Na escola de administração nós a consideramos uma das grandes aquisições", diz Mark Ritson, ex-professor de marketing que lecionou na London Business School e na Sloan School of Management do MIT.

A presença da Ben & Jerry's em Israel é muito anterior à venda para a Unilever. Quando Jeff Furman, membro do conselho durante quatro décadas, ajudou a negociar a licença da empresa em 1987 com o empresário israelense Avi Zinger, ele não suspeitava que o negócio um dia colocaria a marca no centro de uma tempestade política.

"Eu não tinha qualquer ideia real ou compreensão das lutas [dos palestinos] na época", diz Furman. Isso mudou quando, em 2012, ele visitou Israel e os territórios palestinos. "Eu descreveria isso como uma experiência que mudou minha vida... o que vi lá foi chocante para mim", diz Furman. "Senti uma forte responsabilidade como judeu."

Lucro ou propósito

À medida que a Ben & Jerry's crescia, o clima nos negócios também estava mudando. A velha ortodoxia, a ideia de Milton Friedman de que "a responsabilidade social de uma empresa é aumentar seus lucros", estava saindo de moda –pelo menos em teoria.

Um dos maiores defensores do novo método "orientado por propósitos" de gestão de empresas e marcas foi Paul Polman, executivo-chefe da Unilever de 2009 a 2019. Polman procurou não apenas aproveitar a onda das boas ações corporativas, mas liderá-la. Definindo metas verdes ambiciosas para a Unilever, ele argumentou que marcas e empresas com um propósito claro acabariam se saindo melhor financeiramente. A visão desencadeou um debate acirrado, mas coincidiu com tendências mais amplas. Os investimentos ambientais, sociais e de governança estavam em alta, expandindo-se para se tornar o segmento de mais rápido crescimento na indústria de gestão de ativos.

Depois que Polman deixou a Unilever, em 2018, seu sucessor, Jope, assumiu a causa. Jope estabeleceu planos para "descartar marcas que sentimos não serem capazes de representar algo mais importante do que apenas deixar seu cabelo brilhante, sua pele macia, suas roupas mais brancas ou sua comida mais saborosa". No entanto, nos Estados Unidos de Donald Trump, com guerras culturais em fúria, as empresas que adotaram noções de propósito amplas e às vezes vagas tornaram-se alvo de campanhas mais afiadas.

A campanha de Vermont pelos palestinos se uniu ao movimento Boicote, Desinvestimento, Sanções (BDS), que pressiona as empresas a retirar seus negócios de Israel e é desprezado por muitos políticos americanos e israelenses. Os ativistas adotaram a Ben & Jerry's como alvo, diz Faour, por causa do compromisso da marca com a "justiça racial e social".

Em 2015, a Ben & Jerry's decidiu doar suas taxas de licenciamento de Israel para organizações que apoiam os palestinos, diz Furman, e começou a adquirir amêndoas de uma cooperativa de agricultores palestinos, mas evitou outras ações. "Não havia uma maioria clara [de diretores] totalmente comprometida e, dada a repercussão, você precisa se sentir forte e unido para seguir em frente", diz Furman.

Pessoas próximas à Ben & Jerry's dizem que a decisão de deixar a Cisjordânia ocupada foi gradual, tomada após várias viagens ao Oriente Médio. Mas em 2021 a pressão estava aumentando. A marcha em Burlington ocorreu em meio a um conflito entre Israel e o Hamas, grupo militante palestino que controla a empobrecida Faixa de Gaza. Mais de 250 palestinos e 13 israelenses foram mortos.

Em julho de 2021, a Ben & Jerry's anunciou que encerraria as vendas nos territórios palestinos ocupados. Anuradha Mittal, que havia substituído Furman como presidente do conselho de administração em 2018, disse ao Financial Times: "Nosso sorvete estava viajando em estradas que os palestinos não podem usar. Ficou muito claro que a presença de nosso produto no território palestino ocupado era inconsistente com nossos valores".

A reação foi rápida. O então primeiro-ministro ultranacionalista de Israel, Naftali Bennett, ligou para Jope para acusar sua subsidiária de um "passo claramente anti-Israel", que seria recebido com uma resposta "forte". Nos Estados Unidos, Mittal foi alvo de ameaças de críticos, a ponto de mudar repetidamente sua família de endereço residencial.

Zinger, o licenciado israelense, argumentou que ele não poderia ter tirado o sorvete dos assentamentos sob uma lei antidiscriminação israelense que impede as empresas de rejeitar clientes com base no local onde vivem. Em março deste ano, ele abriu um processo legal contra a Unilever, alegando que a decisão de não renovar sua licença violava as leis dos EUA que regem boicotes comerciais e relações com Israel. Zinger chamou a retirada planejada de "equivocada, ilegal e imoral".

Além da intensa pressão política, o movimento da Ben & Jerry’s começou a pesar sobre o preço das ações da Unilever, já em declínio. Enquanto a marca de sorvetes procurava se distanciar do movimento BDS, os fundos de pensão estatais dos EUA começaram a se desfazer do grupo, citando leis destinadas a combater o BDS, muitas delas aprovadas nos últimos anos.

O Centro Simon Wiesenthal, que faz campanha contra o antissemitismo, publicou anúncios em jornais nos EUA pedindo aos consumidores que "digam ao seu supermercado local para parar de vender sorvete antissemita!"

O racha

A batalha chega num momento difícil para a Unilever. Acionistas insatisfeitos com o desempenho medíocre do grupo sob o comando de Jope não receberam bem uma amarga rixa pública com uma de suas marcas-estrela. Em janeiro deste ano, Terry Smith, cuja empresa de investimentos Fundsmith é um dos principais investidores, disse que o grupo ficou "obcecado em exibir publicamente credenciais de sustentabilidade em detrimento do foco nos fundamentos do negócio". O racha da Ben & Jerry's foi "a manifestação mais óbvia disso", acrescentou.

No mesmo mês, foi revelado que o fundo ativista Trian, do investidor americano Nelson Peltz, havia adquirido uma participação na Unilever. Em maio, Peltz entrou para o conselho. Não foi seu primeiro contato com a empresa. Peltz, que é presidente do conselho de governadores do Centro Simon Wiesenthal, encontrou-se com Jope a pedido de organizações judaicas e autoridades israelenses para fazer lobby contra a retirada planejada da Ben & Jerry’s no ano passado.

A Unilever decidiu encerrar a ação legal de Zinger em junho. Dando à diretoria da Ben & Jerry's prazo de apenas quatro dias, de acordo com seus próprios documentos legais, ela anunciou que venderia o braço israelense da marca de sorvetes para uma empresa dirigida por Zinger, num acordo que foi concluído dois dias depois. Zinger saudou a vitória, mas a batalha não acabou. Dias depois, o conselho da Ben & Jerry's processou sua controladora, buscando bloquear a venda.

Embora a Unilever tenha alegado que a transação estava fora do alcance do conselho independente da Ben & Jerry's –assim como a decisão de abrir o processo–, ambos os lados usaram documentos judiciais para alertar sobre os perigos de uma divisão separada que poderia seguir um caminho diferente. A Unilever argumentou que "se o estado do Texas adotasse uma medida que entrasse em conflito com os pontos de vista do conselho sobre direitos LGBTQ, direitos de armas ou meio ambiente, a posição do conselho sugere que poderia forçar [o braço americano da Unilever] a encerrar suas décadas de operações no Texas".

O advogado da Ben & Jerry’s alertou em uma audiência que o licenciado israelense, que deterá os direitos da marca em hebraico e árabe, poderia levá-la em direções indesejadas: "Em vez de Peace Pops, ele poderia fazer 'Tank Pops'", disse Shahmeer Halepota.

Em entrevista ao jornal israelense Ha'aretz em julho, Zinger foi indagado se, no futuro, ele poderia rebatizar o sorvete sabor Chunky Monkey para, por exemplo, Ami and Tammi (João e Maria). Ele respondeu: "Sim, mas talvez 'Judeia e Samaria' seja preferível", usando o nome israelense da área que inclui o território palestino ocupado, a Cisjordânia.

Em um sinal de como a disputa se tornou mal-humorada, o conselho da Ben & Jerry's disse que a Unilever deixou de pagar os salários dos diretores. A Unilever não negou essa alegação, embora uma pessoa informada sobre a situação tenha dito que não era obrigada pelo acordo de aquisição a pagar aos diretores independentes.

No final de setembro, investidores cada vez mais críticos de Jope tiveram atendido seu desejo de um novo começo, quando ele anunciou que se aposentaria no final de 2023. Seu sucessor terá que traçar um caminho entre os imperativos do lucro e do propósito, dizem os analistas –embora o clima econômico cada vez mais sombrio esteja testando os compromissos éticos das marcas. A direção da viagem parece clara: Jope disse em julho que havia muitos motivos para a marca "entrar em sua missão de justiça social sem se desviar da geopolítica".

Mas Field argumenta que as empresas que buscam uma abordagem ética podem ter dificuldades para estabelecer tais limites. "É muito difícil ser ético em apenas uma área restrita de questões globais", diz ele. "Se você está tocando o coração dos consumidores que estão preocupados com o mundo, é improvável que essas preocupações se limitem a apenas uma área... Não faz sentido dizer que a Ben & Jerry's é apenas sobre meio ambiente e sustentabilidade."

Enquanto isso, a marca e sua controladora permanecem em desacordo. A disputa ainda pode prejudicar a tentativa de recuperação da Unilever, argumenta Bruno Monteyne, analista da Bernstein, reduzindo sua capacidade de adquirir start-ups, uma importante fonte de novas ideias para empresas de bens de consumo. "A capacidade da Unilever de adquirir empresas criativas, alternativas, com visão de futuro e de ponta provavelmente é materialmente impactada por isso", diz Monteyne.

Enquanto isso, outras empresas que assistem à briga ficarão cautelosas ao permitir que suas subsidiárias tenham muita independência, acrescenta ele. Se as relações não melhorarem, a Unilever poderá vender a marca, ou mesmo toda a sua divisão de sorvetes, diz Monteyne, embora Jope tenha procurado esvaziar essas sugestões.

Field argumenta que a Unilever e a Ben & Jerry's precisam de "algum tipo de solução de compromisso, uma saída diplomática". Mas, no clima político atual, outras empresas não podem confiar que evitarão um destaque tão indesejado: "Qualquer marca que se defina como ética precisa estar à frente do jogo e descobrir como lidar com o próximo grande problema do mundo".

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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