Chef de cozinha negra assume hotel em que já foi camareira

Rosa Maria frequentou Hotel Central, no Recife, desde criança, acompanhando a mãe quando ia trabalhar

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Rosa Maria do Nascimento

Chef do hotel Central, em Recife

São Paulo

Quando acompanhava a mãe, camareira, ao hotel Central, no centro do Recife, a chef de cozinha pernambucana Rosa Maria do Nascimento, 57, subia até o último andar para olhar os navios que chegavam e partiam. Ela gostava de imaginar que o prédio da década de 1920 era um castelo.

Hoje, Rosa comanda o empreendimento, localizado no bairro da Boa Vista. Fundado em 1928, ele já foi o mais alto da região Nordeste —e quase fechou as portas por conta da pandemia.

Sentada, com as mãos fechadas no joelho, Rosa Maria do Nascimento, 57, chef de cozinha e dona do Tempero da Rosa, no Hotel Central, em Recife
Rosa Maria, chef de cozinha e dona do Tempero da Rosa, no Hotel Central - Dilvulgação

O prédio foi tombado pelo governo estadual em 2018. O texto do Diário Oficial destacava o Central como de peculiaridade arquitetônica, sendo o primeiro hotel de grande porte de Pernambuco. O local tem 59 apartamentos, com diárias a partir de R$ 200 para janeiro, segundo sites de reserva.

Com acesso a um aporte de R$ 30 mil, por meio do fundo Baobá, fundo direcionado à promoção da equidade e de direitos raciais, ela pôde assumir a direção do hotel.

Ela diz, em depoimento à Folha, ter orgulho de ser uma mulher negra que sempre soube que poderia estar onde quisesse. "Mesmo que a sociedade branca e rica ainda resista a nos ver fora do fundo da cozinha. Não só como mulher preta, mas como mulher, ficou claro para mim que toda mulher pode e deve estar onde quiser."

Minha mãe, que era analfabeta, tinha mandado colocar meu nome de Rosa Maria, mas meu pai sempre trocava os nossos nomes no cartório. Só descobri que meu nome era Rozenir quando entrei na escola, mas sempre fui chamada de Rosa em casa.

Com 12 filhos para criar, meu pai era militar e minha mãe trabalhou a vida inteira como arrumadeira e empregada doméstica. Aos nove anos, ela saiu do interior para Recife, para cuidar das crianças na casa do senhor que construiu o hotel. Começou a trabalhar nele aos 13 anos, trazendo comida para os operários da obra; depois da inauguração, foi faxineira e camareira.

Cresci nesse hotel e amo o prédio como se fosse uma parte de mim. A primeira lembrança que tenho dele era de me esconder no carrinho das camareiras e ir até o topo, no oitavo andar, para ficar olhando os navios atracarem no porto. É o primeiro arranha-céu do Recife e a vista era ainda mais bonita, parecia um castelo que tinha brotado no meio da cidade.

Detalhe da fachada do Hotel Central, prédio histórico no centro do Recife, administrado pela chef de cozinha Rosa Maria do Nascimento
Detalhe da fachada do Hotel Central, na região central do Recife - Divulgação

Comecei a trabalhar no hotel aos 18 anos, também como camareira, mas me identifiquei com a cozinha logo de cara. Quando cheguei, o cardápio era mais fino, o garçom usava fraque. Com o tempo, passei a colocar comida nordestina e popular no menu —comecei a fazer rabada, buchada, galinha à cabidela, peixada.

A comida nordestina é temperada e saborosa: é de comer, suar frio e depois procurar uma rede para deitar. Com a guinada, o negócio logo fez sucesso e atraiu clientes de fora do hotel. Arrendei o restaurante do hotel em 2016, que chamei de Tempero da Rosa.

A sensação foi tão boa, uma mulher preta tocando aquele restaurante que havia servido a elite, da cantora Carmem Miranda ao presidente Getulio Vargas, agora transformado em um lugar que tinha a minha cara. O dono dizia que eu trazia alegria para o hotel, mas ele, infelizmente, morreu em 2019 e logo veio a pandemia.

Quando os herdeiros disseram que estavam pensando em fechar o hotel, perdi o chão. Era como se tivesse tomado uma facada no peito. Eles, então, me perguntaram se queria tomar conta até a pandemia passar. De uns anos para cá, ele já vinha passando por dificuldades e o movimento era fraco. Minha filha foi contra, dizia que não ia dar certo, mas acabei aceitando arrendar o hotel inteiro.

Foram dois anos de muito desespero e luta. Como sou muito arretada, disse para mim mesma que ia botar isso aqui para frente com serestas, lançamentos de livros, rodas de pagode. O povo ia dando ideia e eu ia fazendo. A imprensa de Pernambuco começou a fazer reportagens e viramos de novo um espaço de referência na cidade.

Hoje, muita gente vem de longe para provar o peixe com pirão, o cupim desfiado e o bacalhau. O avanço da vacinação fez a procura por hospedagem ficar mais forte. Com o dinheiro do fundo Baobá, consegui comprar fogão e liquidificador industrial e trocar as cadeiras do restaurante.

Comecei a contratar um monte de gente que estava sem emprego e sem experiência. Atualmente, são 23 mulheres na equipe e o trabalho é grande, mas gosto de ensinar. Dou emprego para gente dos 18 aos 65 anos.

Os artistas têm vindo se hospedar aqui e as pessoas acabam me ajudando muito, mas não é fácil manter um prédio tombado e 59 apartamentos —precisa trocar televisão, ar-condicionado. Meu sonho é continuar tendo forças e receber mais apoio, para manter esse patrimônio cada vez mais vivo.

Depoimento a Douglas Gravas

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