Países ricos atingem 'PIB verde' com terceirização de CO2 para emergentes

Economias desenvolvidas passam a crescer sem aumentar emissão de carbono, sem que isso mude cenário climático global

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São Paulo

Países ricos têm conseguido dissociar o crescimento da economia de um aumento nas emissões de carbono. Dados dos últimos anos mostram que potências globais como EUA, Alemanha e Reino Unido continuaram apresentando uma evolução no PIB (Produto Interno Bruto) sem precisar jogar mais CO2 na atmosfera para isso.

Num primeiro olhar, a notícia parece sinal de progresso na luta contra a emergência climática. Afinal, são países que integram a lista de principais poluidores do planeta, fruto da relação histórica entre alto volume de emissões e bom desempenho da economia.

No entanto, a conquista do "PIB verde" por essas potências esconde uma nova dinâmica de carbono no mundo. Se é verdade que os países ricos dissociaram produtividade e CO2, o mesmo não ocorre com as nações em desenvolvimento, como China e Índia —o que pode indicar um processo de "terceirização das emissões".

Trabalhador carrega briquetes em forno numa fábrica em Panipat, Índia - Anushree Fadnavis - 21.dez.22/Reuters

Em nível mundial, as emissões de gases de efeito estufa continuam subindo, acompanhando a curva do PIB global. Ou seja, embora os países ricos tenham passado a crescer sem aumentar carbono, o cenário climático continua bastante pressionado.

O último relatório do IPCC, Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima, mostra que o mundo está perto de fracassar em manter o aquecimento abaixo de 1,5ºC.

Apesar do tom mais sóbrio, os cientistas alertaram de que as políticas ambientais já implementadas não serão suficientes para reverter a trajetória catastrófica, sendo necessárias ações rápidas e imediatas em todos os fronts.

A previsão pessimista ocorre apesar do "PIB verde" atingido por dezenas de países ao longo dos últimos anos.

Em parte, isso se deve ao fato de que muitas nações ricas diminuíram o CO2 emitido em seus territórios ao importar —em vez de produzir— produtos com grande pegada de carbono.

Um relatório do IPCC de 2014, revelado pelo jornal The Guardian, dizia que as emissões estavam sendo deslocadas dos países ricos para as economias emergentes.

A terceirização viria na forma de dispositivos eletrônicos, smartphones e roupas fabricados na China, por exemplo, para serem consumidos nos EUA e na Europa.

De acordo com o estudo "A brecha do carbono na política climática", cerca de 13% das emissões chinesas em 2015 foram geradas na produção de bens para outros países. Na Índia, a porcentagem foi de 20%.

O deslocamento geográfico do carbono ajuda a entender porque o volume de CO2 global continua crescendo apesar de alguns países terem conseguido dissociar o PIB do aumento de emissões. Mas a terceirização não explica tudo.

William Wills, diretor do Centro Brasil no Clima, destaca que as grandes economias também estão mais avançadas na agenda climática, e contam com medidas de redução de emissões e mercados de carbono há algum tempo. Já países em desenvolvimento, como Índia e China, apresentam mais dificuldades em cortar o CO2.

Ele ainda lembra que algumas potências têm se preocupado com a "fuga de cabono", avançando em políticas para tributar a importação de mercadorias com base nos gases de efeito estufa emitidos durante a produção. A Europa, por exemplo, discute um mecanismo de ajuste de carbono na fronteira (Cbam, na sigla em inglês).

"Se por um lado essa terceirização acontece, por outro a União Europeia e outros países tentam evitar esse efeito [de fuga de carbono]", diz.

No entanto, penalizações como essa costumam levantar debates sobre justiça climática. A crítica é que países ricos —que se beneficiaram de uma economia baseada em carbono no passado— agora exigem medidas ambientais de nações que estão começando a experimentar algum desenvolvimento econômico.

Wills concorda com essa perspectiva, mas lembra que a janela de atuação para resolver a crise climática está se fechando, e os cenários desenhados são trágicos.

"A urgência climática acaba sobrepujando essa responsabilidade histórica, dado todo o risco que a população —principalmente a mais pobre— está correndo", argumenta.

Energia limpa e eficiência também explicam ‘PIB verde’

Segundo o antropólogo Jason Hickel, a redução de emissões nos países de renda alta não é uma novidade e vem acontecendo desde a década de 1990.

A dissociação entre economia e CO2, ele diz, pode ser alcançada mudando as fontes de energia. Nações ricas tiveram mais sucesso em substituir combustíveis fósseis e carvão por alternativas limpas, que ficaram mais baratas nos últimos anos.

O próprio relatório do IPCC destaca que, de 2010 a 2019, houve reduções sustentadas nos custos para energia solar (85%) e eólica (55%).

Outro ponto tem a ver com a própria eficiência da economia, que ficou menos intensiva em carbono nos últimos 50 anos. A quantidade de CO2 necessária para produzir US$ 1.000 de PIB caiu no mundo todo, resultado de avanços tecnológicos.

O problema, na visão de Hickel, é a velocidade com que a economia global se descarboniza.

"Nenhum dos países de alta renda está no caminho certo. Na verdade, os países que alcançaram uma dissociação absoluta entre PIB e emissões estão atualmente a caminho de levar mais de 200 anos para zerar as emissões", afirma.

Na visão dele, não há nada de verde nisso e afirmar o contrário seria greenwashing —propaganda enganosa sustentável.

Hickel é um dos principais pensadores do movimento chamado Degrowth (decrescimento, em português), que defende a retração da economia para salvar o planeta.

Na avaliação dele, é necessária uma mitigação muito mais veloz, dado que simples melhorias de eficiência não vão conduzir o mundo para o caminho certo.

"Os países de alta renda precisam abandonar o crescimento como objetivo e reduzir ativamente as formas de produção menos necessárias, a fim de reduzir o uso de energia diretamente e, portanto, permitir uma descarbonização mais rápida", argumenta.

Ronaldo Seroa da Silva, doutor em Economia pela University College London e professor da UERJ, pensa diferente.

Para ele, é preciso um choque tecnológico para tornar a economia ainda menos intensiva em gases de efeito estufa.

"[Nós já] Conseguimos produzir mais com menos carbono. Só que o crescimento da produção está maior do que a redução da intensidade de carbono", diz. "Então mesmo com a intensidade caindo, as emissões anuais sobem."

Ele lembra que há opções promissoras, com potencial muito benéfico para o meio ambiente, como o hidrogênio verde e soluções de captura de carbono da atmosfera.

"Não vamos conseguir uma trajetória de 1,5ºC via recessão. Temos que fazer via tecnologia."

A melhor forma de acelerar esses avanços, diz Silva, é tornar a emissão de carbono cara —por meio de um imposto ou, de preferência, de um mercado regulado.

"É isso que vai gerar o incentivo, porque as empresas vão ver que é preferível investir nessas mitigações do que pagar o preço de mercado sobre o carbono", afirma.

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