Trabalhador rural resgatado em Minas não tinha banheiro e geladeira, segundo investigação do governo

OUTRO LADO: defesa do empregador diz que a maneira como a situação foi exposta não condiz com os fatos

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Sorocaba (SP) e Cajamar (SP)

Um trabalhador rural que estaria em condições degradantes foi resgatado por auditores do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) no dia 6 de junho em Conceição da Barra de Minas (a 232 km de Belo Horizonte). Segundo autoridades, ele não recebia salário e não tinha acesso a banheiro, chuveiro elétrico e geladeira onde vivia.

Os auditores realizaram a fiscalização após denúncia anônima pelo Disque 100. A vítima, 58, é conhecida por familiares como Nelson. Segundo a investigação, ele trabalhava há pelo menos 16 anos realizando serviços rurais para o mesmo empregador.

Procurado, o advogado do empregador, Victor Ivan Lopes Taroco, informou que a maneira como a situação está sendo exposta não condiz com a realidade dos fatos. "Assim, os devidos esclarecimentos já estão sendo prestados aos órgãos competentes, evitando-se injustos julgamentos prévios", afirmou.

Barracão em fazenda no interior de Minas Gerais onde auditores do trabalho fizeram fiscalização de suposto trabalho escravo - Divulgação

De acordo com a fiscalização, documentos de Nelson ficavam retidos com o empregador.

Segundo Luciano Rezende, auditor fiscal do trabalho do MTE, as violações foram além da negação de direitos. "Ao lado da ausência de condições justas, do não-pagamento de salários, da usurpação dos períodos de descanso e lazer, ao trabalhador foi negado o básico para manutenção de sua existência. A vítima teve usurpado seu direito à água, ao alimento, à higiene, à habitação. Faltava-lhe o básico, o mínimo. E ainda nem tinha direito de adquiri-los com seu dinheiro, pois nem salário recebia pelo seu trabalho", diz o auditor.

Em entrevista à Folha, Nelson conta que conhecia o empregador desde a infância e que ele o convidara, em 2007, para realizar serviços no campo, como tirar leite de vacas, fazer cercas e limpar o terreno.

"[Na época, ele] Prometeu um salário pequeno, de R$ 90. Passou a pagar até mais de um salário. Depois, começaram as compras", afirma Nelson.

Fiscalização aponta que local não tinha geladeira e banheiro - Divulgação

Ele diz que o empregador propôs não pagar em dinheiro, mas que haveria a remuneração por meio da compra de itens no mercado. "No início ele pagava, depois de cerca de três meses, passou a não pagar. E dizia: ‘Tudo que você precisar comprar, me avisa que eu trago. Uma hora nos acertamos’. Eu fazia a lista de compras e ele trazia para mim", diz o trabalhador à reportagem.

Nelson conta que a fazenda fica a 40 minutos de distância, a pé, da casa que ele tem na mesma cidade, herdada de seu pai. Segundo os auditores, no barracão onde ele ficava não havia banheiro, chuveiro, pia, torneira e geladeira.

"Lá não tinha água encanada. Buscava água com um latão em um córrego. Fervia no fogão à lenha, colocava no chuveirinho para tomar banho", afirma o trabalhador. Os auditores afirmam que o chuveirinho usado nos banhos era uma espécie de recipiente preso a uma viga.

Segundo a fiscalização, o local não tinha banheiro, nem itens de uso pessoal, como sabonete e papel higiênico. "Não havia vaso sanitário. O patrão até preparou o cômodo, mas por problemas na obra, desistiu de finalizar. Disse: ‘Vamos deixar [a obra] parada, qualquer coisa o senhor volta pra casa e usa’", afirma Nelson.

Devido à distância entre o trabalho e sua casa, o homem afirma que preferia não voltar para usar o banheiro. Caso fosse necessário, fazia as necessidades em um matagal próximo, segundo afirmou aos auditores.

A inspeção também informou que o local não tinha geladeira. Perguntado, Nelson disse que cozinhava em fogão à lenha todos os dias, já que não havia como conservar os alimentos. As carnes eram mantidas em gordura, para não estragar, diz o trabalhador.

"Um tempo atrás, o patrão trazia carne. Como não tinha gordura suficiente, mudou para o toucinho. Fazia torresmo frito com arroz, feijão e verduras." Para lavar as roupas, conta que usava a água do rio próximo.

Segundo a apuração dos fiscais trabalhistas, o ex-empregador teria feito um cadastro em nome de Nelson no Auxílio Brasil (nome anterior do Bolsa Família), no fim de 2022, além de uma poupança conjunta no banco, no nome dos dois, aberta em março. O trabalhador afirma que recebeu uma pequena parte do dinheiro, e o restante dos valores eram depositados na conta.

Os fiscais reportaram que próximo ao local do resgate estava estacionada uma Volkswagen Saveiro Cross preta, e que o veículo está no nome de Nelson.

O trabalhador afirma que, após colocar o carro em seu nome, o empregador teria mantido retidos, por mais de um ano, seu CPF e sua cédula de identidade, além do cartão do Bolsa Família. "Os documentos ficaram com ele, que disse ‘Deixa guardados comigo, pelo menos você não perde.’ Eu até respondi que não perco, nunca perdi documentos", afirma.

Segundo os fiscais do trabalho, ele recebeu do ex-empregador valores que correspondem a menos de 5% do que tem direito. O Ministério Público negocia com o advogado do ex-empregador um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta).

Como denunciar casos de trabalho escravo contemporâneo

Denúncias anônimas de trabalho análogo à escravidão podem ser feitas pelo Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC); e pelo Sistema Ipê, do Ministério do Trabalho, no link https://ipe.sit.trabalho.gov.br/.

De acordo com o Código Penal, no artigo 149, o trabalhador está em condições análogas à de escravo se submetido a trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho, escravidão por dívida ou retenção no local de trabalho. Se um caso atender a qualquer um desses critérios já pode ser enquadrado como trabalho análogo à escravidão.

A retenção do trabalhador se dá por meio de proibição do uso de meios de transporte, vigilância ostensiva ou posse de documentos ou objetos pessoais.

Segundo dados do Ministério do Trabalho divulgados pela Folha nesta quinta (15), o número de trabalhadores resgatados em situação semelhante à escravidão em 2023 já é o maior para um primeiro semestre em 12 anos. Até 14 de junho, o governo informou ter encontrado 1.443 pessoas em trabalho análogo à escravidão. Em todo o primeiro semestre de 2022, foram 771, segundo os dados oficiais.

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