Descrição de chapéu The New York Times

Os custos do mundo real da corrida digital pelo bitcoin

Minas de Bitcoin lucram com a eletricidade devorando-a, vendendo-a e até mesmo desligando-a e causam imensa poluição. Em muitos casos, o público paga um preço

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Gabriel J. X. Dance
The New York Times

O Texas sofria com a falta de eletricidade. A tempestade de inverno Uri derrubou usinas de energia em todo o estado, deixando dezenas de milhares de casas na escuridão gelada. No final de 14 de fevereiro de 2021, quase 40 pessoas morreram, algumas de frio congelante.

Enquanto isso, na casca de uma antiga fundição de alumínio a uma hora de Austin, fileiras e mais fileiras de computadores usavam eletricidade suficiente para abastecer cerca de 6.500 residências enquanto corriam para ganhar bitcoins, a maior criptomoeda do mundo.

Os computadores realizavam trilhões de cálculos por segundo, em busca de uma combinação indescritível de números que o algoritmo do bitcoin aceitaria. Aproximadamente a cada dez minutos, um computador em algum lugar adivinha corretamente e ganha um pequeno número de bitcoins, que nas últimas semanas valiam cerca de US$ 170 mil cada.

A mina de bitcoin Bitdeer em Rockdale, Texas, em 28 de fevereiro de 2023. Para compensar as emissões criadas a cada ano pelo uso de energia da mina de bitcoin Bitdeer, quase 12 milhões de árvores teriam que ser plantadas e cultivadas por uma década - Jordan Vonderhaar/NYT

No Texas, os computadores continuaram funcionando até pouco depois da 0h. Em seguida, o operador da rede elétrica do estado ordenou que fossem desligados, sob um acordo que permitia isso se o sistema estivesse prestes a falhar. Em troca, começou a pagar à empresa de bitcoin, Bitdeer, uma média de US$ 175 mil por hora para manter os computadores offline. Nos quatro dias seguintes, a Bitdeer ganharia mais de US$ 18 milhões por não operar, com as taxas pagas pelos texanos que enfrentaram a tempestade.

O New York Times identificou 34 dessas operações de grande escala, conhecidas como minas de bitcoin, nos Estados Unidos, todas colocando uma pressão imensa na rede elétrica e a maioria encontrando novas maneiras de lucrar com isso. Suas operações podem criar custos –incluindo contas de eletricidade mais altas e enorme poluição de carbono– para todos ao seu redor.

Até junho de 2021, a maior parte da mineração de bitcoin era na China. Em seguida, o país expulsou as operações de bitcoin, pelo menos por um tempo, citando o uso de energia entre outras razões. Os Estados Unidos rapidamente se tornaram o líder global do setor.

Desde então, exatamente quanta eletricidade as minas de bitcoin estão usando no país e seu efeito nos mercados de energia e no meio ambiente não são claros. O Times, usando registros públicos e confidenciais, bem como os resultados dos estudos que encomendou, apresentou as estimativas mais abrangentes até o momento sobre o uso de energia das maiores operações e os efeitos em cascata de sua demanda voraz.

Uma imagem de satélite fornecida pelo Nearmap mostra a mina de bitcoin Atlas Power em Williston, N.D. A instalação usa mais eletricidade do que as 168 mil residências ao redor - Nearmap via NYT

Em algumas áreas, isso fez com que os preços subissem. No Texas, onde 10 das 34 minas estão conectadas à rede elétrica do estado, o aumento da demanda fez com que as contas de eletricidade dos clientes de energia aumentassem quase 5%, ou US$ 1,8 bilhão por ano, de acordo com uma simulação realizada para o Times pela pesquisadora de energia e consultoria Wood Mackenzie.

O uso adicional de energia em todo o país também causa tanta poluição de carbono quanto o acréscimo de 3,5 milhões de carros movidos a gasolina às estradas americanas, de acordo com uma análise da WattTime, uma empresa de tecnologia sem fins lucrativos. Muitas operações de bitcoin se promovem como ecologicamente corretas e instaladas em áreas ricas em energia renovável, mas suas necessidades de energia são grandes demais para ser satisfeitas apenas por essas fontes. Como resultado, elas se tornaram uma benção para a indústria de combustíveis fósseis: a WattTime descobriu que as usinas de carvão e gás natural entram em ação para atender a 85% da demanda que essas operações de bitcoin adicionam às suas redes.

Seu enorme consumo de energia combinado com sua capacidade de desligar quase instantaneamente permite que algumas empresas economizem e ganhem dinheiro puxando habilmente as alavancas dos mercados de energia dos EUA. Elas podem evitar taxas cobradas durante o pico de demanda, revender sua eletricidade mais caro quando os preços disparam e até mesmo ser pagas por se oferecerem para desligar.

Em alguns estados, a receita das operadoras de bitcoin pode vir de outros clientes poderosos. O exemplo mais claro é o Texas, onde as empresas de bitcoin são pagas pelo operador da rede por prometerem desligar rapidamente, se necessário, para evitar apagões. Na prática, elas raramente são solicitadas a desligar e, em vez disso, ganham dinheiro adicional enquanto fazem exatamente o que estariam fazendo de qualquer maneira: buscando bitcoins.

Várias das empresas estão sendo pagas por meio desses acordos na maior parte do tempo em que operam.

Em entrevistas e declarações, muitas delas disseram que não são diferentes de outros grandes usuários de energia, exceto por sua disposição a desligar rapidamente para beneficiar a rede. Vários se opuseram ao método que o Times e o WattTime usaram para estimar suas emissões, que calculou a poluição causada pela energia adicional gerada para atender à demanda das minas, mostrando que ela vinha predominantemente de combustíveis fósseis.

As empresas disseram que esse método lhes aplicava um critério injusto.

"A análise citada pode ser usada para atacar qualquer setor que consuma energia", disse David Fogel, CEO da Coinmint, que opera no interior do estado de Nova York. "Acho que toda a ideia de destacar setores específicos como esse é injusta."

Muitos acadêmicos que estudam a indústria de energia disseram que a mineração de bitcoin está, sem dúvida, tendo efeitos ambientais significativos.

"Eles adicionam centenas de megawatts de nova demanda quando já enfrentamos a necessidade de cortar rapidamente a energia fóssil", disse Jesse Jenkins, professor de Princeton que estuda as emissões da rede elétrica.

"Se você se preocupa com a mudança climática", acrescentou, "isso é um problema."

Lee Bratcher, presidente do Texas Blockchain Council, grupo de lobby de bitcoins, disse em um email que a indústria incentiva o desenvolvimento de novas usinas de gás natural e renovável. Mas, segundo especialistas do setor de energia, embora alguns parques eólicos atuais possam estar se beneficiando modestamente, a geração renovável leva anos para ser construída e geralmente requer compromissos de clientes que podem garantir que comprarão energia por uma década ou mais.

De acordo com Jenkins, é mais provável que a demanda de energia quase constante das operações de bitcoin mantenha as usinas de combustível fóssil funcionando do que leve a mais energia renovável.

Algumas empresas de bitcoin que o WattTime descobriu serem as que mais poluem se autodenominam fontes renováveis de energia.

Por exemplo, o CEO da Riot Platforms descreveu a mineração de bitcoin como "exclusivamente benéfica e favorável à energia renovável". Noventa e seis por cento da demanda de energia adicionada pela mina da empresa foi atendida por combustíveis fósseis, mostrou a análise do WattTime.

Jogo de poder dos mineradores

A mineração de bitcoin produz receita estável, mas usar tanta eletricidade também pode ser um modelo de negócios.

Momentos de clima extremo fornecem exemplos especialmente gritantes. Veja 23 de junho de 2022 –o oitavo dia consecutivo de temperaturas de quase 37 graus em Austin, o que permitiu à Riot Platforms demonstrar várias maneiras de transformar eletricidade em dinheiro.

Como muitos compradores industriais, a empresa havia comprado antecipadamente sua energia por uma fração do preço disponível para clientes residenciais. A mina da Riot opera a 450 megawatts –a maior do país.

Todos os dias daquele mês de junho, os palpites de seus computadores ganhavam bitcoins no valor médio de cerca de US$ 342 mil. Mas a empresa tinha duas maneiras adicionais de melhorar suas margens de lucro.

Primeiro, ela se inscreveu no Responsive Reserve Service, um programa da rede elétrica do Texas que oferece uma maneira de reduzir rapidamente a tensão se a rede ficar sobrecarregada, agindo como um seguro contra apagões. O programa paga mineradores e outras empresas por prometerem parar de usar eletricidade mediante solicitação. Na realidade, eles raramente são solicitados a fechar, mas ainda assim são pagos para fazer a promessa.

Da 0h até quase 16h de 23 de junho, a Riot ganhou mais de US$ 42 mil com o programa, enquanto continuava a minerar bitcoins.

Naquela época, a empresa mudou para a segunda técnica: evitar as taxas que o Texas cobra para manter e fortalecer a rede elétrica. Ela fez isso desligando brevemente quase completamente.

Por volta das 18h30, a empresa havia retomado a mineração. Se a Riot estivesse operando totalmente o dia todo, teria incorrido em cerca de US$ 5,5 milhões em taxas –custos que são em grande parte cobertos por outros texanos. Ao longo do ano, isso economizou para a Riot mais de US$ 27 milhões em taxas potenciais.

Os atos da empresa foram descritos em dados publicados pelo operador da rede do Texas, o Electric Reliability Council of Texas, ou Ercot. Embora os registros se refiram aos fornecedores de energia por pseudônimos, o Times conseguiu identificar seis das dez operações do Texas nos dados.

Um mecanismo final permite que algumas empresas ganhem dinheiro extra quando os preços da eletricidade disparam: elas podem parar de minerar e revender eletricidade para outros clientes. Isso rendeu à Riot cerca de US$ 18 milhões no ano passado.

Com a mineração de bitcoin, a empresa faturou US$ 156,9 milhões em 2022.

Depois de contabilizar a economia e a receita de cada uma das estratégias, a Riot disse aos investidores que seu custo de eletricidade em 2022 foi de 2,96 centavos de dólar por quilowatt-hora.

Em comparação, o preço médio para outras empresas industriais no Texas foi US$ 0,072. Para residentes, US$ 0,135.

‘Texas será o criptolíder’

Essas oportunidades levaram algumas das maiores operações de bitcoin do país a escolher o Texas.

"É um fardo financeiro enorme para os texanos", disse Ben Hertz-Shargel, que lidera pesquisas relacionadas à rede na Wood Mackenzie e participou da equipe que conduziu a simulação baseada em mercado para o Times com base em dados históricos do Ercot. Devido à forma como o mercado do Texas opera, os aumentos são mais acentuados para clientes residenciais, disse Hertz-Shargel.

Outros dizem que o aumento dos preços incentivará o desenvolvimento de tipos mais baratos de geração de energia.

No Texas, as empresas têm aliados poderosos. O governador Greg Abbott disse em um tuíte que "o Texas será o criptolíder" e hospedou o Texas Blockchain Council na mansão do governador. O ex-CEO interino da rede declarou-se "pró-bitcoin", e o atual vice-presidente do conselho da rede é um ex-conselheiro do Texas Blockchain Council. Ainda assim, em março, três senadores estaduais republicanos se uniram para patrocinar um projeto de lei que restringiria incentivos fiscais para mineradores e colocaria limites estritos à sua participação em programas como o Responsive Reserve.

Em Rockdale, onde duas das maiores minas do país operam fora dos limites da cidade, a administradora local, Barbara Holly, disse ao Times que a cidade costumava ser "uma pequena comunidade bastante rica". Ela disse que isso mudou quando uma grande planta industrial que gerou milhares de empregos fechou há mais de uma década. "Apenas cortou as pernas desta comunidade", disse ela.

Era a antiga fundição de alumínio, hoje sede da mina Bitdeer.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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