Descrição de chapéu The New York Times

Cortadoras de cana são submetidas a esterilização e casamento infantil na Índia

Fornecedores de açúcar lucram com trabalho precário; PepsiCo disse que vai avaliar condições, e Coca-Cola não comentou

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Megha Rajagopalan Qadri Inzamam
Beed (Índia) | The New York Times

Archana Ashok Chaure deu sua vida ao açúcar.

Ela se casou com um cortador de cana no oeste da Índia por volta dos 14 anos —"jovem demais", disse, "para ter ideia do que era o casamento". A dívida com seu empregador a mantém nos canaviais.

No inverno passado, ela fez o que milhares de mulheres da região são pressionadas a fazer quando enfrentam cólicas menstruais dolorosas ou doenças crônicas: fez uma histerectomia [remoção do útero] e voltou ao trabalho.

Isso mantém o açúcar fluindo para empresas como a Coca-Cola e a Pepsi.

Archana Ashok Chaure em sua casa em Kawadgaon, na Índia; ela trabalha em canaviais e tem 3 filhos - Saumya Khandelwal - 21.mai.2023/The New York Times

As duas fabricantes de refrigerantes ajudaram a transformar o estado de Maharashtra em uma potência produtora de açúcar.

Mas uma investigação do New York Times e do Fuller Project descobriu que essas marcas também lucraram com um sistema de trabalho brutal que explora crianças e leva à esterilização desnecessária de mulheres ainda em idade ativa.

Foram entrevistadas pessoas de todas as etapas da cadeia de suprimentos, incluindo dezenas de trabalhadores, empreiteiros, donos de usinas e ex-executivos de empresas multinacionais.

O Times também examinou prontuários médicos e entrevistou médicos, legisladores, autoridades governamentais, pesquisadores e voluntários que passaram a carreira examinando a vida dos cortadores de cana de Maharashtra.

Meninas jovens são empurradas para casamentos infantis ilegais para que possam trabalhar ao lado de seus maridos cortando e colhendo cana-de-açúcar. Em vez de receber salários, elas trabalham para pagar adiantamentos de seus empregadores —um arranjo que exige, por exemplo, que paguem uma taxa pelo privilégio de faltar ao trabalho, mesmo se for para ver um médico.

Uma consequência extrema, porém comum, desse aprisionamento financeiro são as histerectomias. Os intermediários emprestam dinheiro para as cirurgias, mesmo para resolver problemas tão rotineiros quanto cólicas menstruais. E as mulheres —a maioria delas sem educação formal— dizem que têm pouca escolha.

As histerectomias as mantêm trabalhando, sem as distrações das consultas médicas ou das dificuldades de menstruar em canaviais sem acesso a água corrente, banheiros ou abrigo.

Remover o útero de uma mulher tem consequências duradouras, especialmente se ela tiver menos que 40 anos. Além dos riscos a curto prazo de dor abdominal e coágulos sanguíneos, muitas vezes provoca a menopausa precoce, aumentando o risco de doenças cardíacas, osteoporose e outras doenças.

Mas para muitos trabalhadores do açúcar, a operação tem um desfecho particularmente sombrio: tomar empréstimos dando salários futuros como garantia os afunda ainda mais em dívidas, garantindo que voltem aos canaviais nas próximas safras.

Grupos de defesa dos direitos dos trabalhadores e a agência de trabalho da ONU definiram tais arranjos como trabalho forçado.

Os produtores e compradores de açúcar têm conhecimento desse sistema abusivo há anos. Consultores da Coca-Cola, por exemplo, visitaram os campos e usinas de açúcar do oeste da Índia e, em 2019, relataram que havia crianças cortando cana-de-açúcar e pessoas estavam trabalhando para pagar seus empregadores. Eles documentaram isso em um relatório para a empresa, no qual há uma entrevista com uma menina de 10 anos.

Em um relatório corporativo não relacionado naquele ano, a empresa disse que estava apoiando um programa para "gradualmente reduzir o trabalho infantil" na Índia.

O abuso de trabalho é endêmico em Maharashtra, de acordo com um relatório do governo local e entrevistas com dezenas de trabalhadores. O açúcar do estado tem adoçado latas de Coca-Cola e Pepsi há mais de uma década, de acordo com um executivo da NSL Sugars, que opera usinas no estado.

A vast queue of trucks loaded with cane, bottom, wait to enter the NSL Sugars factory in the Beed district of Maharashtra state,
Usina da NSL Sugars em Beed, na Índia - Saumya Khandelwal - 10.dez.2023/The New York Times

A PepsiCo, em resposta a uma lista de descobertas do Times, confirmou que um de seus maiores franqueados internacionais compra açúcar de Maharashtra.

O franqueado acabou de abrir sua terceira fábrica de produção e engarrafamento lá. Uma nova fábrica da Coca-Cola está em construção em Maharashtra, e a Coca-Cola confirmou que também compra açúcar no estado. Essas empresas usam o açúcar principalmente para produtos vendidos na Índia, segundo autoridades do setor.

A PepsiCo disse que a empresa e seus parceiros compram uma pequena quantidade de açúcar de Maharashtra, em relação à produção total no estado.

Ambas as empresas publicaram códigos de conduta proibindo fornecedores e parceiros comerciais de usar trabalho infantil e forçado.

"A descrição das condições de trabalho dos cortadores de cana em Maharashtra é profundamente preocupante", disse a PepsiCo em um comunicado. "Vamos entrar em contato com nossos parceiros franqueados para realizar uma avaliação das condições de trabalho dos cortadores de cana-de-açúcar e quaisquer ações que possam ser necessárias."

A Coca-Cola não quis comentar uma lista detalhada de perguntas.

O coração dessa exploração é o distrito de Beed, uma região rural e pobre de Maharashtra que é lar de grande parte da população migrante de cortadores de cana.

Um relatório do governo local entrevistou aproximadamente 82 mil trabalhadoras de cana de Beed e descobriu que cerca de 20% delas havia feito histerectomia. Uma pesquisa governamental separada e menor estimou o número em cerca de 33%.

omen who work in the sugarcane fields, all of whom have undergone hysterectomy surgeries, show their scars
Mulheres que trabalham em canaviais exibem suas cicatrizes de histerectomia - Saumya Khaldelwal/The New York Times

Os abusos continuam —apesar de investigações do governo local, reportagens e alertas de consultores de empresas— porque ninguém assume a responsabilidade.

Grandes empresas ocidentais têm políticas para erradicar abusos de direitos humanos em suas cadeias de suprimentos. Na prática, raramente, se é que o fazem, visitam os canaviais. E dependem principalmente de seus fornecedores, os donos das usinas, para supervisionar questões trabalhistas.

Os proprietários das usinas de açúcar, no entanto, afirmam que na verdade não empregam os trabalhadores. Eles contratam empreiteiros para recrutar migrantes de aldeias distantes, transportá-los para os canaviais e pagar seus salários.

Como esses trabalhadores são tratados é uma questão entre eles e os empreiteiros, segundo os donos.

Esses empreiteiros são frequentemente jovens cuja única qualificação é possuir um veículo. Eles afirmam estar apenas distribuindo o dinheiro dos proprietários, e não conseguiriam ditar as condições de trabalho ou os termos de emprego.

A pressão para fazer a cirurgia

Ninguém pressiona as mulheres a fazer histerectomias como forma de controle populacional. Na verdade, ter filhos é comum. Como as meninas geralmente se casam jovens, muitas têm filhos na adolescência.

Em vez disso, elas buscam histerectomias na esperança de interromper suas menstruações, como uma forma drástica de prevenção do câncer do colo do útero ou para acabar com a necessidade de cuidados ginecológicos de rotina.

A Índia é o segundo maior produtor de açúcar do mundo, e Maharashtra responde por cerca de um terço dessa produção.

Os abusos surgem da configuração peculiar do setor canavieiro de Maharashtra. Em outras regiões açucareiras, os proprietários rurais recrutam trabalhadores locais e os remuneram.

Em Maharashtra, isso funciona de forma diferente. Cerca de 1 milhão de trabalhadores, geralmente de Beed, migram por dias para os canaviais no sul e oeste. Ao longo da colheita, entre outubro e março, eles se deslocam de canavial para canavial.

Em vez de salários dos proprietários rurais, eles recebem um adiantamento —frequentemente em torno de US$ 1.800 (R$ 9.000) por casal, ou aproximadamente US$ 5 (R$ 25) por pessoa por dia para uma temporada de seis meses— de um empreiteiro da usina. Esse sistema centenário reduz os custos trabalhistas para as usinas de açúcar.

Trabalho no canavial em Pawardi, no estado de Maharashtra, na Índia - Saumya Khandelwal - 9.dez.2023/The New York Times

Nos canaviais, onde passou a vida cortando açúcar para um engenho de propriedade da NSL Sugars, Archana Ashok Chaure, como outras, dorme no chão, passa horas por dia curvada e leva as cargas na cabeça.

Absorventes são caros e difíceis de encontrar, e não há onde descartá-los. Sem acesso a água corrente, as mulheres lidam com suas menstruações nos campos, com panos reutilizados que tentam lavar discretamente à mão.

As mulheres frequentemente têm problemas de saúde comuns: dor nas costas e menstruações prolongadas ou irregulares que tornam o trabalho mais difícil.

"Todos os problemas estão interligados com sua higiene pessoal e sua condição econômica. Elas têm que trabalhar muito duro", disse o Dr. Ashok Belkhode, cuja prática em Maharashtra inclui ginecologia.

A histerectomia é uma cirurgia de rotina realizada em todo o mundo, embora raramente para mulheres nos seus 20 e 30 anos. Na Índia, é mais comum, inclusive como forma de controle de natalidade, e outras partes do país também têm altas taxas de histerectomia.

Mas na indústria de açúcar de Maharashtra, todos —empreiteiros, outros trabalhadores e até mesmo médicos— pressionam as mulheres para fazer a cirurgia.

Casadas para o Trabalho nos canaviais

Em suas fotografias de casamento, Chaure encara a câmera com seriedade. Ela nunca tinha conhecido o noivo. Mas isso era normal. O mesmo havia acontecido com muitas de suas amigas.

Como muitas mulheres das regiões rurais de Maharashtra, Chaure não sabe sua idade exata, mas está na casa de seus 30 anos. Ela calcula que tinha cerca de 14 anos no dia do casamento. Foi dois anos depois de ter abandonado a escola de sua aldeia para que seus pais a levassem para os canaviais.

Archana Ashok Chaure mostra foto de seu casamento, quando tinha cerca de 14 anos - Saumya Khandelwal/The New York Times

Ela sabia que o casamento significava o fim de algo. Ela havia sonhado em se tornar enfermeira. Mas o casamento é o momento em que muitas meninas desistem de seus futuros e de seus corpos para se dedicarem ao açúcar.

Todo outono, antes da colheita, geralmente em outubro, os donos dos engenhos enviam empreiteiros para aldeias em Beed, como a de Chaure, para recrutar trabalhadores.

O casamento infantil é ilegal na Índia e é considerado internacionalmente uma violação dos direitos humanos. Suas raízes na Índia, no entanto são profundas, e tem causas culturais e econômicas complexas.

Mas nessa parte de Maharashtra, dois incentivos econômicos levam as meninas ao casamento.

Primeiro, o corte da cana é um trabalho para duas pessoas. Equipes de marido e mulher ganham o dobro do que um homem trabalhando sozinho. O sistema de duas pessoas é conhecido como koyta, em referência à foice usada para o trabalho.

Segundo, quanto mais tempo as crianças acompanham seus pais no campo, mais tempo os pais devem sustentá-las. Então as famílias frequentemente buscam casar as filhas jovens, mesmo na adolescência.

"Se somos casadas, o estresse deles diminui, e a responsabilidade é transferida para os ombros de nosso marido", disse Chaure. "Então eles nos casam."

Os trabalhadores disseram que quase nunca há contratos oficiais ou registros contabilizando quanto de cana-de-açúcar eles cortam. No final da safra, os empreiteiros quase sempre declaram que há um saldo remanescente.

Sinais de Alerta

Shubha Sekhar, uma executiva da Coca-Cola que se concentrou nos direitos humanos na Índia, falou durante a pandemia da Covid-19 para um grupo de estudantes universitários.

Por videoconferência, ela descreveu os desafios de operar em um país identificado pelos próprios documentos da Coca-Cola como arriscado devido ao trabalho forçado e infantil.

Normalmente, as empresas compram de fornecedores, ela explicou. Com o açúcar, ela disse que às vezes "não se tem visibilidade do que está acontecendo".

Mas esses canaviais estão geralmente próximos aos próprios fornecedores da Coca-Cola. A cana-de-açúcar perde peso —e valor— a cada minuto após ser cortada, então os engenhos geralmente são construídos perto das plantações.

Todos os problemas, incluindo casamento infantil e histerectomias, são conhecidos na região há anos.

Houve até um momento, não muito tempo atrás, em que as coisas poderiam ter mudado.

 Women contract laborers try to prepare a load of sugarcane for transport by tractor after the dayÕs work in Pawarwadi
Canavial em Pawarwadi, na Índia - Saumya Khandelwal - 9.dez.2023/The New York Times

Em 2019, o jornal The Hindu BusinessLine relatou um número incomumente alto de histerectomias entre cortadoras de cana-de-açúcar em Maharashtra. Em resposta, um legislador estadual, juntamente com uma equipe de pesquisadores, deu início uma investigação. Eles entrevistaram milhares de mulheres.

O relatório daquele ano descreveu condições de trabalho precárias e ligou diretamente a alta taxa de histerectomias ao setor canavieiro. Incapazes de tirar folga durante a gravidez ou para consultas médicas, as mulheres não têm escolha a não ser buscar a cirurgia, concluiu o relatório.

Por acaso, a Coca-Cola divulgou seu próprio relatório em 2019. Após acusações não relacionadas do Brasil e do Camboja sobre apropriação de terras, a Coca-Cola contratou uma empresa para auditar sua cadeia de suprimentos em vários países.

Os auditores, do grupo Arche Advisors, visitaram 123 fazendas em Maharashtra e em um estado vizinho com um pequeno setor açucareiro.

Eles encontraram crianças em cerca da metade delas. Muitas simplesmente haviam migrado com suas famílias, mas o relatório da Arche encontrou crianças cortando, carregando e amarrando cana-de-açúcar em 12 fazendas.

A Arche observou que os fornecedores da Coca-Cola não forneciam banheiros nem abrigo. E citou "sinais de trabalho forçado". Apenas algumas das usinas que foram auditadas tinham políticas sobre trabalho escravo ou infantil, e essas políticas se aplicavam apenas às usinas, não aos canaviais.

O relatório do governo pediu que as fábricas fornecessem água, banheiros, saneamento básico e o salário mínimo. Poucas ou nenhuma mudança foi implementada.

Grandes compradores como PepsiCo e Coca-Cola dizem que seus fornecedores devem atendar a padrões rigorosos de direitos trabalhistas. Mas essa promessa só é tão boa quanto a disposição de monitorar milhares de fazendas na base de suas cadeias de suprimentos.

Isso raramente acontece. Um executivo da NSL Sugars, fornecedor franqueado da Coca-Cola e da PepsiCo que possui engenhos em todo o país, disse que os representantes das empresas de refrigerantes poderiam ser minuciosos ao perguntar sobre a qualidade do açúcar, eficiência de produção e questões ambientais. Questões trabalhistas nos campos, ele disse, quase nunca são abordadas.

Os inspetores das empresas de refrigerantes raramente visitam as fazendas de onde a NSL obtém sua cana-de-açúcar, disse o executivo. Procurado, o franqueado da PepsiCo, Varun Beverages, não respondeu a pedidos de comentários.

Os proprietários dos engenhos também raramente visitam os campos. Executivos da Dalmia Bharat Sugar e da NSL Sugars dizem que praticamente não mantêm registros de seus trabalhadores.

Ed Potter, ex-chefe de direitos trabalhistas globais da Coca-Cola, disse que a empresa realizou muitas auditorias de direitos humanos durante seu mandato. Mas, com tantos fornecedores, a supervisão pode parecer aleatória.

Sanjay Khatal, diretor administrativo de um importante grupo de lobby para usinas de açúcar, disse que os proprietários dos engenhos não poderiam fornecer benefícios aos trabalhadores sem serem vistos como empregadores diretos. Isso aumentaria os custos e colocaria em risco todo o sistema.

Uma coisa que mudou após o relatório do governo foi uma regra destinada a impedir médicos de lucrar com cirurgias desnecessárias.

"Alguns médicos fizeram disso uma forma de ganhar mais dinheiro", disse o Dr. Chaitanya Kagde, um ginecologista de uma instituição pública de Beed. Embora os hospitais públicos ofereçam histerectomias gratuitas ou a custo reduzido, eles muitas vezes estão longe das mulheres que trabalham em áreas rurais.

A nova regra exigia que as histerectomias fossem aprovadas por um funcionário de saúde de alto escalão da região.

Mas as histerectomias em mulheres mais jovens continuam. Embora muitos médicos concordem que alguns cirurgiões as realizam com muita frequência, eles também observam que quem solicita a cirurgia são as pacientes.

Em uma entrevista em maio passado, o responsável por Beed, Suresh Sable, disse que o governo não deveria questionar os médicos. Ele disse que seu escritório ainda aprovava 90% dos pedidos de histerectomia.

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