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Novo livro de Milei começa com megashow e termina em suspeita de plágios

Presidente fez lançamento em noite no Luna Park, enquanto revista o acusava de copiar trabalhos de outros economistas

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São Paulo

Javier Milei parece eufórico. No centro do palco do Luna Park —a mítica casa de eventos de Buenos Aires— o presidente argentino escolheu cantar "Panic Show" para recepcionar apoiadores.

A música da banda de rock La Renga tornou-se uma espécie de hino anarcocapitalista. Ela fala de um leão (um dos apelidos do presidente, de cabelo desgrenhado, que lembra uma juba) destroçando inimigos e se autoproclamando "rei de um mundo perdido".

A apresentação, em maio, era a festa de lançamento de "Capitalismo, Socialismo y la Trampa Neoclásica" (Capitalismo, Socialismo e a Cilada Neoclássica), seu mais recente livro, ainda sem edição no Brasil.

O presidente argentino, Javier Milei dança no palco do Luna Park em um concerto ao vivo para lançamento de seu novo livro, cercado por músicos e banhado pela luz dos holofotes, enquanto uma multidão de fãs captura o momento em seus celulares, criando um mar de telas iluminadas
O presidente argentino, Javier Milei, dança no palco do Luna Park - Luis Robayo - 22.mai.24/AFP

O show foi seguido de um painel para discutir os temas abordados por ele no livro, o primeiro que lançou desde que assumiu a Casa Rosada, em dezembro do ano passado.

Assim como as anteriores, a nova obra começa com uma coleção de discursos recentes de Milei, como o que ele deu no Fórum Econômico de Davos, em que questiona a própria ideia de justiça social.

Na segunda parte, o homem que ganhou as eleições de 2023 com um discurso de dolarização e fim do Banco Central faz uma análise do crescimento econômico, com críticas ao socialismo e ao ensino de economia na Argentina —que forma, em suas palavras, "escravos da religião do Estado".

Não deixa de ser curiosa, portanto, a escolha das fotos que ilustram a capa do livro: contornando o título, uma Havana socialista com prédios arruinados contrasta com uma reluzente Singapura (que respira capitalismo, mas onde o Estado pode ser tudo, menos ausente).

Enquanto o libertário se apresentava, canais de TV menos alinhados com o ajuste que o governo tem feito na economia aproveitavam as imagens do evento para repercutir dados recentes de queda da atividade econômica (de 8,4% em março) e seus reflexos na renda.

Nos dias seguintes, o governo ainda se veria envolvido em um escândalo por não distribuir alimentos guardados em galpões, em um momento em que a pobreza no país subiu para 55,5% e a indigência para 17,5%, segundo a UCA (Universidad Católica Argentina).

O ministério responsável por repartir a comida também é acusado de abrigar funcionários fantasmas. Milei foi obrigado a sair a público em defesa da ministra, Sandra Pettovello, enquanto o governo lida com aumento da brecha entre os tipos de dólar, recomposição de aposentadorias, trocas no gabinete e desconfianças por parte do mercado e do campo a respeito da sustentabilidade do plano de ajuste.

Ao mesmo tempo, no dia 12 de junho o governo finalmente conseguiu avançar no Senado com uma versão mais branda da Lei de Bases e, no dia seguinte, pôde comemorar uma inflação de 4,2% em maio —ainda que diversos analistas projetem um repique em junho.


Mas o lançamento do livro também foi ofuscado por outro motivo. Segundo reportagem de Tomás Rodriguez, para a revista Notícias, "Capitalismo, Socialismo y la Trampa Neoclásica" pode ter mais de uma dezena de plágios de trabalhos de outros economistas.

A lei de propriedade intelectual da Argentina determina que a reprodução de trechos de outras obras é legal, desde que a fonte seja devidamente citada.

As supostas cópias se referem, principalmente, ao artigo de 2000 "Demanda por Dinero: Teoría, Evidencia, Resultados", publicado por Verónica Mies e Raimundo Soto, da UC (Pontificia Universidad Católica de Chile).

Na edição digital do livro de Milei à qual a Folha teve acesso há trechos idênticos que não estão entre aspas, os autores não são mencionados em notas de rodapé e não há referência a eles no fim da obra.

"Talvez uma das invenções mais impressionantes do ser humano seja a criação do dinheiro", escreveram os professores chilenos no artigo.

Um parágrafo idêntico e trechos seguintes aparecem na seção do livro de Milei que trata do equilíbrio macroeconômico, por exemplo.

Também há um trecho igual ao que figura na edição de 2007 de "Teorías Económicas sobre el Mercado de Trabajo", obra conjunta de pesquisadores de uma das instituições que, durante a campanha eleitoral, Milei prometeu fechar, o Conicet (Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas, na sigla em espanhol).

"O capital político de Milei tem sido construído sobre a ideia de que ele é alguém que domina as questões econômicas. Bem, uma pessoa que sabe tanto não tem necessidade de plagiar", diz o jornalista Tomás Rodriguez à Folha.

Questionada, a editora Planeta disse que não iria comentar o caso. Procurados, os economistas chilenos e a Universidad Católica de Chile não responderam.

Em entrevistas à mídia de seu país, Julio César Neffa, que organizou o trabalho do Conicet, disse não ter lido o livro do presidente, mas, caso ele tenha mesmo cometido esses plágios, trata-se de uma falta de ética.

Também questionada, a Casa Rosada não respondeu. Na véspera do evento no Luna Park, o porta-voz, Manuel Adorni, rebateu a revista e afirmou que tudo estava de acordo com a lei de propriedade intelectual. "Quando fizeram a reportagem a respeito de 'Pandenomics', tudo também foi uma grande farsa."

Adorni se referia a uma investigação anterior da revista Noticias, sobre outro livro de Milei, "Pandenomics", de 2020, em que ele aponta alternativas ultraliberais para a economia após a pandemia de Covid.

A revista publicou que ele replicava textos de outros autores, entre eles "Las Matemáticas de las Epidemias: Caso México 2009 e Otros", um artigo sobre estatísticas de epidemias anteriores.

A publicação entrevistou em maio de 2022 o autor principal desse artigo, o cientista mexicano Galindo Uribarri. "Foi o único caso em que um plagiado me disse que abriria ações judiciais e que iria até o fim. Infelizmente, para ele, não deu tempo", diz Rodriguez. O pesquisador morreu em setembro daquele ano.

Durante a campanha argentina, em 2023, o principal rival de Milei na disputa, o candidato governista Sergio Massa, chegou a mencionar o caso, para irritar o anarcocapitalista.

"Javier, eu nem posso citar as suas referências adequadamente, já que no último livro que você escreveu há três alegações de plágio", disse Massa a Milei, que o chamou de mentiroso.

"Alguém poderia dizer que era óbvio que nós iríamos procurar novos casos de plágio. Então, a pergunta é: o que passa pela cabeça de Milei para ele continuar fazendo isso?", questiona Juan Luis González, autor de "El Loco", biografia não autorizada do presidente.

"Essa distorção e essa necessidade de transcendência fazem com que Milei cometa erros graves, como se gabar da capa da revista Time com sua foto, quando o próprio artigo nem era tão simpático a ele. Há um desejo muito forte de estar no centro do palco", acrescenta Rodriguez.

Capa do livro "Capitalismo, Socialismo y la Trampa Neoclásica", de Javier Milei, editora Planeta, lançamento 2024. Ela mostra uma foto com prédios espelhados e modernos de Singapura no alto e uma outra imagem, com prédios antigos e descuidados em Cuba
Capa do livro "Capitalismo, Socialismo y la Trampa Neoclásica", de Javier Milei - Divulgação

Capitalismo, Socialismo y la Trampa Neoclásica

  • Preço US$ 10,99 (edição digital)
  • Autoria Javier Milei
  • Editora Planeta
  • Págs. 376
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