Leia entrevista com o oposicionista russo Garry Kasparov
Rosto mais conhecido da oposição russa fora do país, o enxadrista Garry Kasparov critica duramente os líderes do Ocidente por apoiarem o regime de Vladimir Putin. Segundo ele, esse amparo permitiu ao Kremlin chegar à "destruição final da democracia" na Rússia.
Em entrevista exclusiva à Folha, por e-mail, Kasparov cita como exemplo o fato de o G7 ter virado G8, mantendo a Rússia como membro do clube dos países ricos. Para ele, a manobra visava induzir à democracia, mas virou uma desculpa para o Kremlin mostrar-se em sua propaganda como aceito pelo Ocidente liberal.
O ex-campeão mundial de xadrez, 44 anos, admite que não é uma figura exatamente popular em seu país --como a conversa com qualquer russo permite deduzir. "A maioria dos russos nunca ouviu meus discursos políticos. Eu estou vetado da TV russa", diz.
Para ele, a popularidade de Putin, que é o principal esteio da candidatura do seu virtual sucessor, Dmitri Medvedev, é um mito "baseado em oito anos de propaganda e intimidação".
A saída, diz Kasparov, é continuar protestando. Amanhã haverá uma nova edição da "Marcha dos Dissidentes" em Moscou, São Petersburgo e outras cidades. O ativista teme por sua vida ou liberdade? "Lógico", afirma, "não quero ser mártir". Ele poderia, amparado na fama internacional, deixar a Rússia. Mas diz que prefere ficar, porque uma ditadura aberta não interessaria ao Kremlin porque o Ocidente, "onde está o dinheiro", poderia aí reclamar. "Enquanto é possível lutar, ainda há esperança", afirma o ativista.
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FOLHA - Qual a sua opinião sobre a "unção" de Medvedev como sucessor de Putin?
GARRY KASPAROV - Nunca foi uma questão se Putin e sua gangue iriam ou não ficar no poder. A única questão era como eles fariam isso e se haveria alguma objeção internacional à destruição final da democracia russa. Agora nós sabemos as respostas. Putin e Medvedev podem trocar de títulos, ou chamarem a si mesmos do que quiserem. Eles podem fazer eleições de mentira e eliminar a oposição. O Ocidente vai dizer pouco e não fazer nada.
FOLHA - O sr. tem alguma opinião pessoal sobre Medvedev? O sr. acha que ele fará alguma diferença como presidente ou será manipulado por Putin, talvez como premiê?
KASPAROV - Eu não o conheço, mas é bem pouco provável que ele tenha alguma independência no futuro próximo. Putin um dia pode querer deixar o poder, mas só fará isso quando acreditar que está a salvo de represálias. Medvedev é inteligente o suficiente para saber que ele está ganhando uma bomba-relógio de presente.
A economia é muito fraca e só resiste devido aos altos preços do petróleo. A infra-estrutura russa é um desastre e as pessoas estão acordando para tudo isso lentamente, apesar da propaganda do Kremlin.
Alguém vai ter que levar a culpa e está meio tarde para culpar Ieltsin, o Ocidente ou grupos massacrados de oposição como o nosso.
FOLHA - A Anistia Internacional acaba de divulgar relatório sobre a coerção a liberdades civis como os protestos de A Outra Rússia. O que o sr. espera para o futuro próximo?
KASPAROV - Mais do mesmo, porque o Kremlin não dá a mínima à Anistia, já que ninguém age a partir de suas descobertas. Anistia Internacional e outros grupos têm feito um trabalho excelente para mostrar a incontáveis fraudes e falhas do regime de Putin. E daí?
Putin e seus amigos só se preocupam com o dinheiro. Exceto que algum líder ocidental venha e ameace seus lucros, o que importa o que eles falam? Ameaçar uma investigação nas práticas bancárias e de comércio, ameaçar remoção do G7 se não houver reforma democrática, isso tudo poderia funcionar. O resto é só palavras.
E eu falo G7, ou G7+1, porque esse grupo é para ser formado por grandes democracias industriais. A Rússia de Ieltsin foi autorizada a entrar como uma forma de encorajamento, para promover uma tendência democrática. Obviamente, isso falhou. A presença da Rússia hoje é uma piada total, e um desastre para a oposição democrática.
Como Putin, e agora Medvedev, são aceitos como iguais pelos outros, fica muito difícil para nós argumentar que eles não são realmente democratas enquanto a propaganda do Kremlin os mostra sorrindo com [o presidente americano] George W. Bush, [o premiê britânico] Gordon Brown e outros.
Se Medvedev pode ficar com a cadeira de Putin e continuar no G7, a entidade precisa mudar de nome. Por que não convidar a China comunista? Na verdade, tanto Índia como Brasil merecem muito mais serem aceitos no G7 do que a Rússia de Putin. Pelo menos eles são democracias!
A Rússia está recebendo muitos benefícios especiais apesar de não os merecer, na verdade bem ao contrário. Se é para ser um grupo só para as grandes democracias industriais históricas, tudo bem. Se não, então deixem outros participar também.
FOLHA - Alguns analistas crêem que a oposição, mesmo em um ambiente político livre, não conseguiria enfrentar a popularidade de Putin numa eleição. O que o sr. acha?
KASPAROV - Eu adoraria descobrir, é isso o que eu acho. Por ambiente político livre, entendo que nós deveríamos ter acesso à TV e a outros meios pela primeira vez em muitos anos. A diferença seria instantânea e dramática. O mito da popularidade de Putin é baseado em oito anos de propaganda constante e na intimidação contra toda a oposição.
Dê-nos eleições livres e justas e um mês na mídia para mostrar a verdade para o povo e a Rússia iria virar de cabeça para o ar.
FOLHA - A mesma linha de pensamento argumenta que enquanto a economia estiver bem, os russos tendem a olhar para um líder nacional, alguma figura forte, paternal. Isso é correto?
KASPAROV - Antes de tudo, a economia não está em bom estado. O crescimento do PIB e os números per capita não refletem a realidade de 85% dos meus compatriotas. Os preços estão subindo rapidamente e dezenas de milhares de russos estão vendo seu padrão de vida decair rapidamente --apesar da minoria rica que está se dando bem em São Petersburgo e Moscou.
Eu não acredito nessa história sobre os russos tendo a necessidade de um novo czar no DNA deles. Novamente, a propaganda constante diz aos russos que sem um quase-ditador, seria o caos. E lembre que muita gente tem péssimas memórias da confusão da transição pós-comunista nos anos de Ieltsin.
Havia problemas reais, é lógico. Mas a solução é ter democracia de verdade, com prestação de contas ao povo. Reabilitar Stalin como um "líder forte com alguns problemas" não é o que deveríamos esperar, mas é o que está acontecendo.
FOLHA - Quais seus planos políticos para o futuro próximo?
KASPAROV - Em abril nós vamos fazer uma conferência para discutir o futuro da oposição democrática.
Nós temos que continuar a luta para ter uma voz sobre liberdades civis e um futuro democrático. Isso significa mais marchas nas ruas, mais protestos, e qualquer outra coisa que possa evitar essa nova ditadura de deitar raízes profundas na Rússia.
FOLHA - O sr. é muito reconhecido no exterior, mas parece que essa posição é disputada aqui. A que o sr. atribui isso, ao Estado? Ou o sr. acha que o russo não é atingido por sua mensagem?
KASPAROV - A maioria dos russos nunca ouviu meus discursos políticos. Eu estou vetado da TV russa. Só apareço em uma estação de rádio no meu país [a Ekho Moskvi, de Moscou, que enfrenta processos judiciais por isso]. Nenhum jornal principal vai editar um editorial meu ou de qualquer um dos meus colegas pró-democracia. Eles são todos controlados pelo Kremlin ou por seus aliados. A mídia costuma me demonizar, e a outros líderes e ativistas anti-Kremlin.
Na TV, eu já ouvi que sou um agente da CIA, um cidadão americano, todo tipo de fantasia bizarra. É por isso que eu tento viajar pelo país e falar pessoalmente, embora haja muita coerção.
Mas também é verdade que muitos russos não percebem a conexão entre suas vidas e o sistema político daqui. Eles não tiveram poder por gerações, em muitos casos. O Kremlin diz a eles que a democracia sob Ieltsin foi um truque corrupto que não deve ser tentado de novo. Então, acho que vai levar tempo para reconectar as pessoas ao processo. Mas primeiro o processo precisa ser purificado.
FOLHA - O sr. teme por sua vida ou liberdade?
KASPAROV - Depois de ser atacado e preso várias vezes, seria estúpido dizer que não tenho medo. Lógico que eu tenho, nós todos temos. Nós marchamos na frente de policiais que ouviram que nós somos extremistas perigosos, inimigos da Rússia. Somos seguidos pelos grupos fomentados pelo Kremlin, a maioria de jovens.
Muitos dos nossos organizadores e voluntários estão na cadeia sob acusações espúrias, outros foram espancados. No ano passado, um jovem foi atacado por policiais e ficou em coma por semanas até morrer. O risco para a saúde e liberdade são reais, nós sabemos.
Mas se você decide fazer algo, como parar? Se vale a pena lutar pela democracia russa, e muitos estão indo às ruas para lugar por ela, como eu posso cair fora simplesmente porque eu posso? Outros também podem, e eles nem tem a proteção de um nome famoso como eu tenho.
Isso não significa que eu quero ser um mártir. O Kremlin pode banir todos os eventos, decretar lei marcial, prender todo mundo.
Mas isso iria colocar em perigo sua relação delicada com o Ocidente, onde está o dinheiro. Uma ditadura aberta seria um risco para Putin e os seus colegas. Nosso papel é continuar expondo eles e mostrar para o povo que, enquanto é possível lutar, ainda há esperança.
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