Sucessor de Bento 16 terá de lidar com crises, e conclave pode ter surpresas
O conclave que escolherá o sucessor de Bento 16, a partir desta terça, só está acontecendo graças a uma das reviravoltas mais improváveis em séculos de papado. A questão é saber quão improvável e transformador será o resultado do próprio conclave.
A ironia é que o papa que via como sua missão preservar a essência da tradição da igreja é o primeiro em 600 anos a relativizar o lado sagrado e vitalício do cargo de sumo pontífice. Há quem veja o fato como precedente para outros atos de renovação, mesmo porque as crises parecem ter se acumulado no final do pontificado de Joseph Ratzinger (2005-2013).
Globalmente, o peso demográfico do catolicismo continua impressionante --cerca de 1,2 bilhão de fiéis, segundo a conta mais recente.
Mas as regiões onde a igreja concentra sua herança histórica e suas fontes de renda, Europa e EUA, foram tomadas por uma crise de confiança que não dá sinais de passar, fruto dos escândalos de pedofilia envolvendo padres e acobertados por bispos.
Editoria de Arte/Folhapress | ||
Os esforços de Bento 16 (o primeiro papa a encontrar pessoalmente as vítimas) não foram suficientes para desfazer a impressão de uma burocracia ossificada, mais preocupada com a reputação do clero do que com justiça.
A preocupação do último papa com a identidade histórica da igreja também o levou a priorizar a Europa em suas viagens e na escolha de cardeais, ante o desafio de um continente europeu cada vez menos cristão. Um dos resultados, porém, foi um colégio de cardeais com presença desproporcional de europeus.
E há ainda velhos conflitos entre hierarquia e fiéis, como o celibato dos padres e a ordenação de mulheres --questões nas quais, para os críticos da Santa Sé, o apego a tradições não deixa ver que a mudança não afetaria os fundamentos da fé cristã.
Em parte, as muitas crises do reinado de Bento 16 também foram emergências de comunicação. O Vaticano simplesmente parece não ter esperado a avalanche de publicidade negativa ligada, por exemplo, ao cancelamento da excomunhão de bispos tradicionalistas da Sociedade de São Pio 10º, grupo que desafia a autoridade papal.
"Não é que o Vaticano não saiba se comunicar. Hoje ele já é forte nas redes sociais, por exemplo", diz Moisés Sbardelotto, pesquisador da Unisinos. "A questão é como a igreja enxerga sua comunicação com a modernidade de forma mais ampla, e é aí que problemas ocorrem", afirma.
SEM LIDERANÇA CLARA
Apesar do inusitado da situação atual da igreja, a maioria dos cardeais votantes foi escolhida pelo próprio Bento 16 --e os demais o foram por João Paulo 2º, de quem Ratzinger foi o braço direito por décadas.
A palavra-chave é continuidade, portanto --mas com algumas ressalvas, desta vez.
Não há, por exemplo, nenhum peso-pesado do calibre que Ratzinger teve quando da morte de João Paulo 2º. O cenário parece mais nivelado.
O historiador do cristianismo Massimo Faggioli chama a atenção para o passo vagaroso dos cardeais ao marcar a data do conclave. A falta de pressa parece ter intensificado o processo de consulta mútua --um momento de debate sobre os rumos da igreja que Faggioli compara ao início do Concílio Vaticano 2º (1962-65), encontro de bispos que modernizou o catolicismo.
A história indica que não dá para reduzir "papáveis" aos rótulos de conservador ou progressista, diz Sbardelotto. "Quando não há uma liderança clara, e um papa é eleito como figura de transição, pode haver surpresas."
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