Após acordo de paz na Colômbia, Farc iniciam entrega de crianças-soldados
Um dos piores pesadelos provocados pela guerra de 52 anos entre o Estado colombiano e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) pode chegar ao fim neste sábado (10). Trata-se da data acordada entre as duas partes para que a guerrilha comece a entregar os menores de idade recrutados à força.
O primeiro registro de um recrutamento forçado é de 1975, quando o então líder das Farc, Manuel Marulanda, conhecido como "Tirofijo" (morto em 2008), sequestrou um jovem de 17 anos.
Desde então, estima-se que a guerrilha tenha integrado às suas fileiras, à força, cerca de 11.556 crianças e adolescentes de até 18 anos.
"Eu não sei onde está Martín, mas desde que o levaram, deixo minha casa trancada com os meus outros filhos dentro quando vou ao trabalho", contou a Folha Olga Reyes, uma refugiada interna do departamento (região) de Meta, que deixou a área há seis anos, logo após o sequestro do primogênito, com medo de que a guerrilha voltasse para levar seus outros filhos.
Hoje, vivendo na periferia de Bogotá, Olga faz como outras mães, que também trancam os filhos antes de irem trabalhar. "No campo o medo era do sequestro pelas Farc, aqui tememos que os narcotraficantes os levem, ou estuprem nossas meninas", completa.
Essa situação de falta de proteção dos menores causada pelo conflito era citada como prioritária pelo governo durante as negociações com as Farc, nos últimos quatro anos, em Havana. "É um dos maiores horrores do conflito", disse Humberto de la Calle, chefe das negociações por parte do governo.
ENTREGA
O plano para receber os menores será executado com o apoio do Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Passarão por exames médico e psicológico e por um programa de reabilitação.
Um dos desafios será a identificação, para que sejam devolvidos às famílias de origem, que terão de ser localizadas. Afinal, muitas se mudaram, fugindo da violência.
Outro dos desafios é a discrepância de números: segundo o governo, existem atualmente 170 menores de 15 anos em poder das Farc, enquanto a guerrilha afirma que se tratam de apenas 20.
"Temos informação de que são 170, mas a liberação desses primeiros 20 já é um passo importante", disse o ministro de Defesa, Luis Carlos Villegas, em entrevista a um jornal local.
Aqueles com idades entre 15 e 18 anos serão removidos com o restante dos guerrilheiros para as "zonas de segurança", após a aprovação do acordo em plebiscito no próximo dia 2 de outubro.
Do ponto de vista jurídico, o acordo estabelece que todos os menores de idade que integram as Farc hoje sejam considerados vítimas, mesmo os que tenham cometido crimes de lesa humanidade (como assassinatos e sequestros, por exemplo).
Se forem menores de 14 anos, não serão acusados de crimes que possam ter cometido. Se tiverem entre 15 e 18 e sofrerem acusações, receberão perdão oficial.
Para a chefe de investigação do Centro de Memória Histórica, Martha Nubia Bello, "descobrir a verdade sobre o que essas crianças viveram é essencial para reparar os danos causados a elas quando sejam adultas".
Com esse intuito, o centro preparou o documento: "Como Cordeiros entre Lobos", que relata como é a vida das crianças na guerrilha.
Primeiro, recebem ensinamentos sobre a vida nos acampamento e técnicas de combate. As Farc utilizaram centros esportivos de pequenas cidades, transformando-os em uma espécie de "escolas de guerra".
Entre suas primeiras tarefas estavam as e atuar como mensageiros, ajudantes de cozinha e de manutenção do acampamento, mas logo aprendiam também a enterrar minas, vigiar reféns e a participar de ações armadas.
O argumento das Farc, manifestado por declarações de seus líderes, é que, especialmente nas áreas rurais muito pobres, não houve recrutamento forçado.
Segundo eles, as crianças e jovens buscaram voluntariamente a guerrilha, e que houve inclusive casos em que pais entregaram seus filhos a eles, pois não viam outra alternativa de futuro. Afinal, nos acampamentos das Farc, havia garantias de alimentação e abrigo.
Caso o acordo final seja aprovado, esses menores receberão ajuda financeira, alfabetização e assistência psicológica e escolar individualizada, para que recuperem os anos em que não foram à escola. O processo seria pago pelo Estado.
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