Meninas de Mianmar treinam caratê para defender-se de soldados

ESTHER HTUSAN
DA ASSOCIATED PRESS, EM JE YANG (MIANMAR)

Dezenas de meninas adolescentes formam filas todas as tardes na escola para crianças deslocadas internas, trajando uniformes brancos com faixas de várias cores: branco, amarelo, azul. Elas dão chutes altos e pulos de alegria antes de iniciar o treino, soltando gritos em japonês e dando socos no ar.

A razão por que muitas das meninas estão no treino é preocupante: elas querem proteger-se dos soldados de seu próprio país.

As garotas, em sua maioria meninas de 13 a 16 anos de idade, tiveram que abandonar suas casas devido à guerra civil travada há anos no Estado de Kachin, em Mianmar; algumas também perderam suas famílias. Muitos soldados nessa guerra já foram acusados de estuprar meninas e mulheres, mas poucos foram levados à Justiça. As aulas de caratê proporcionam a essas meninas vulneráveis um pequeno senso de poder pessoal.

"Ensinamos a todas as meninas como proteger-se quando alguém tenta agredi-las sexualmente e como reagir a ataques", disse o instrutor Hkun Naw. "Basicamente, as ensinamos a cuidar de sua segurança."

"Queremos assegurar que todas as crianças e os adolescentes que são refugiados internos tenham o direito de fazer alguma coisa que lhes dê alegria e autoconfiança."

Mais de 100 mil pessoas no Estado de Kachin, no norte de Mianmar, foram obrigadas a deixar suas casas devido aos combates entre tropas do governo e rebeldes de etnia kachin que há décadas lutam por maior autonomia. Um cessar-fogo em vigor por 17 anos terminou em 2011.

Je Yang é um dos campos mais superlotados, com mais de 8.000 deslocados internos. Hkawn Ra, 16, é uma dessas refugiadas. Ela fugiu dos combates em seu povoado, Man Dung, quando estava na escola, aos 11 anos. Não viu mais seus pais desde então.

Hkawn Ra sonhava em tornar-se enfermeira um dia, mas já desistiu do sonho. "Por causa da situação política e da guerra civil, não vou poder fazer o que eu queria. Não estou mais revoltada com isso", ela disse.

Mas, depois de tomar conhecimento dos estupros e violência sexual cometida contra mulheres na região, ela está aprendendo caratê. Desde o ano em que a trégua chegou ao fim, uma organização comunitária que atua dentro da Organização pela Independência Kachin vem oferecendo aulas de caratê nas áreas controladas pelos kachin, ensinando autodefesa e autoconfiança a meninas e meninos.

"Eles (os militares) estupram mulheres, e é por isso que eu me interessei pelas aulas. Decidi aprender caratê para me proteger, pelo menos", diz Hkawn Ra.

Organizações de mulheres dizem que há anos as Forças Armadas usam o estupro como arma de guerra. A Liga de Mulheres da Birmânia afirma ter documentado mais de cem casos de estupro e violência sexual cometidos pelo exército desde 2010 contra mulheres de minorias étnicas. O governo e as Forças Armadas guardam silêncio sobre o assunto.

No ano passado, grupos de defesa dos direitos humanos e entidades representativas de muçulmanos rohingyas denunciaram vários casos de estupros cometidos por soldados e policiais contra pessoas da minoria étnica rohingya no Estado de Rakhine, no noroeste do país. As autoridades vêm promovendo varreduras da região desde outubro, quando nove guardas de fronteira foram mortos por agressores desconhecidos. O governo barrou o acesso de jornalistas estrangeiros à região, mas rohingyas que fugiram para o vizinho Bangladesh relatam casos de estupros e homicídios cometidos pelas forças de segurança, e imagens de satélite confirmam suas denúncias de que aldeias teriam sido incendiadas. Numa entrevista coletiva recente, o porta-voz das forças armadas Soe Naing Oo negou que soldados em Rakhine tenham cometido violência sexual ou outras violações dos direitos humanos.

A Associação de Mulheres Kachin da Tailândia e a ONG de assistência jurídica Legal Aid Network lançaram no ano passado um relatório sobre a paralisia da investigação sobre o brutal estupro e assassinato de duas professoras voluntárias kachin em 2015. Dezenas de soldados estavam alojados perto do local do estupro e vários deixaram o local pouco após a descoberta dos corpos, mas nenhum suspeito foi identificado até agora.

Poucos casos foram levados à justiça até agora. Em 2014 um soldado foi sentenciado a sete anos de prisão pelo estupro de uma menina kachin de 7 anos no Estado de Shan, no norte do país. Os soldados de Mianmar acusados de crimes normalmente são julgados por tribunais militares, mas naquele caso os advogados pediram e conseguiram que o julgamento fosse feito por um tribunal civil.

No ano passado, a maioria avassaladora dos eleitores de minorias étnicas votou pela Liga Nacional pela Democracia, de Aung San Suu Kyi, ajudando-a a tomar o lugar de um governo eleito, mas dominado pelos militares. Mas muitos agora estão decepcionados com os esforços de seu governo para resolver uma série de conflitos étnicos e acabar com o que consideram ser a impunidade dos militares.

"Sem falar nas violações dos direitos humanos, e ignorando a verdade e a justiça para as vítimas, não haverá paz real ou reconciliação nacional em nosso país", disse Julia Marip, secretária da Liga de Mulheres da Birmânia.

Com pouca confiança na possibilidade de os soldados serem responsabilizados por seus crimes, as meninas nas aulas de caratê esperam pelo menos impedi-los de cometer qualquer violência, para começar. Elas competem entre elas, e algumas sonham em tornar-se lutadoras profissionais.

"Nosso instrutor disse que podemos ir ao exterior para nos aperfeiçoar. Quero ir ao exterior e virar lutadora profissional", disse Nu Ja, 14.

"Quando elas souberem se defender", disse o instrutor, Hkun Naw, "poderão proteger suas famílias, seu povo e seu país."

Tradução de CLARA ALLAIN

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.