Romance francês anti-imigração de 1973 inspirou estrategista de Trump
Há algo de literário no veto à entrada de cidadãos muçulmanos aos EUA e na crescente aversão a imigrantes.
Literatura racista, em especial: o livro "O Campo dos Santos", publicado em 1973 pelo francês Jean Raspail e lançado em português no Brasil pela editora Ediouro.
Stephen Bannon, estrategista-chefe do presidente americano Donald Trump, citou essa obra repetidas vezes ao referir-se à crise migratória na Europa. Ele disse que a chegada da multidão de refugiados vindos de países em guerra ou extrema pobreza —como Síria, Iraque e Sudão— era uma "invasão", como a do livro.
Mike Theiler - 23.fev.2017/AFP | ||
O estrategista-chefe da Casa Branca, Stephen Bannon, fala em conferência de conservadores |
"Quer dizer, isso é como 'O Campo dos Santos', não é?", afirmou o assessor radical de Trump em abril de 2016, segundo o "Huffington Post".
O "campo dos santos" do título é uma referência a um trecho da Bíblia, contaminando a narrativa anti-imigração com um viés religioso, como aquele que na ideologia de Bannon opõe cristãos a muçulmanos.
Bannon é considerado um dos principais responsáveis pela decisão de Trump de vetar a entrada de cidadãos de países islâmicos.
Nos versículos bíblicos, Satanás seduz tribos inimigas de Deus. Elas "subiram à superfície da terra e cercaram o acampamento dos santos" (Apocalipse 20:9).
ESCATOLOGIA
A obra de Raspail, descrita por críticos desde sua publicação como uma ficção racista, é hoje uma das queridinhas da extrema direita. A tal "invasão" citada por Bannon, liderada por um guru que se alimenta de fezes, começa com a viagem de 800 mil indianos à França.
Sua chegada é vista por outros cidadãos do Terceiro Mundo como um sinal para que se rebelem também.
Líderes europeus e um papa latino-americano relutam em impedir a migração —um fato relembrado em 2015 por Julia Hahn, assessora de Bannon, quando o papa Francisco pediu que os EUA recebessem levas de refugiados.
A hesitação leva a "civilização ocidental" a ser esmagada pelos pés dos imigrantes. A capa de uma tradução ao inglês diz que a obra trata do "fim do mundo branco".
O "Huffington Post" resume dois dos momentos dramáticos do enredo: chineses invadem a Rússia e a rainha do Reino Unido é forçada a casar seu filho com uma mulher paquistanesa, o que parece ser problemático na obra.
Os imigrantes, no barco, são descritos em uma orgia repleta de "rios de sêmen".
FRANÇA
"O Campo dos Santos" foi citado, nos últimos anos, por diversos representantes da extrema direita —ou "alt-right", como eles próprios têm recentemente se descrito.
John Tanton, fundador de uma série de grupos contrários à imigração aos EUA, disse em entrevista ao jornal "Washington Post" em 2006 que se dedicou à questão depois de ler esse livro.
Tanton afirmou que o texto de Raspail, ao incluir "sentimentos diferentes" em relação à imigração, poderia ajudar nas políticas públicas. Ele foi o responsável pela republicação de "O Campo dos Santos" em 1995 e 2001.
A francesa Marine Le Pen, do partido de extrema direita Frente Nacional, também leu a obra, que inclusive recomendou. Sua candidatura, com chances de chegar à Presidência, é marcada por uma aversão a migrantes.
"Vocês têm de estar loucos. Loucos ou desesperados", diz um personagem no livro. "Vocês precisam estar fora de si para apenas sentar-se e deixar que tudo isso aconteça, aos poucos. Tudo devido a sua pena. Sua insípida, insuportável pena."
"Vocês querem destruir o nosso mundo, nosso modo de vida. Nenhum de vocês tem orgulho de sua pele e de tudo aquilo que representa."
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