Atirador da Flórida já tinha problemas na escola, dizem professores

No ensino fundamental, Nikolas Cruz disse que Obama devia ser 'queimado vivo'

Parkland (EUA) | Washington Post

Os problemas de verdade começaram ainda na segunda fase do ensino fundamental e se intensificaram rapidamente.

Houve explosões verbais, desenhos perturbadores de figuras com armas de fogo, problemas constantes de disciplina.

Houve declarações ameaçadoras escritas em sua lição de casa, incluindo uma alusão a matar o presidente Barack Obama, dizendo que ele deveria ser "queimado vivo e comido".

Alguns professores expulsaram Nikolas Cruz de suas salas na Westglades Middle School (escola da segunda parte do ensino fundamental), devido a seu comportamento errático.

Uma professora disse que Cruz foi impedido de entrar na escola com mochila e a segurança da escola teve que revistá-lo para se certificar que ele não estava armado. Os professores estavam muito preocupados com Cruz e se esforçaram para conseguir ajuda para ele.

"Olhando em seus olhos dava para ver que havia um problema", disse um professor que deu aula a Cruz na sexta série. "Seu comportamento em sala de aula não era errado sempre, mas de vez em quando, sim. Ele simplesmente soltava alguma observação inapropriada."

Vários professores que conheceram Cruz no ensino fundamental disseram em entrevistas que ele representou um desafio comportamental cada vez maior para a escola e parecia estar seguindo um rumo preocupante.

Nos anos antes de ele ter alegadamente cometido um dos maiores massacres a tiros numa escola na história dos Estados Unidos, Cruz enfrentou uma longa sequência de medidas disciplinares cada vez mais duras, por insubordinação, uso de linguagem chula, criar confusão, brigas e agressões físicas.

"Posso revelar que eu não me sentia à vontade perto dele e não queria ficar sozinha com ele em minha sala", disse uma ex-professora do atirador, pedindo anonimato para falar devido ao caráter delicado do tema. "É um sinal de como o comportamento dele era perturbador."

Em um ano da segunda parte do ensino fundamental, Nikolas Cruz acumulou diversas infrações, segundo registros disciplinares aos quais teve acesso a emissora WPLG-Local 10, filiada à rede ABC em Miami, que os compartilhou com o "Washington Post". Entre elas, uma briga na segunda semana de aulas e um padrão contínuo de comportamento anárquico, xingamentos e uso de linguagem chula.

Os professores disseram que quando Cruz chegou à oitava série ele já estava cometendo agressões físicas, colidindo com outros alunos nos corredores de modo aleatório, tentando provocar confrontos e brigas e às vezes xingando as pessoas e soltando palavrões, aparentemente sem qualquer provocação.

"Às vezes alguma coisa o deixava chateado e ele agia agressivamente em sala de aula", falou um professor. As coisas que ele escrevia em sua lição de casa foram ficando mais perturbadoras, incluindo diatribes repetidas contra a sociedade americana, o comentário sobre Obama e outros textos que os professores acharam alarmantes. Ele desenhou uma suástica numa prova. Escreveu sobre seu interesse enorme por armas de fogo e o fato de que era a favor delas.

Seus professores do ensino fundamental e médio o encaminharam para terapia individual e de família, como mostram os registros. Convocaram reuniões com seus pais e chamaram assistentes sociais. Durante o ensino médio Cruz foi suspenso em dado momento e instruído a sair do campus da escola.

Ele foi encaminhado por algum tempo a uma escola para jovens emocionalmente perturbados. Finalmente, depois de ser disciplinado por uma agressão que cometeu na escola Marjory  Stoneman Douglas, os professores pediram uma avaliação da ameaça que ele representava à escola, e ele acabou sendo expulso. Isso aconteceu mais ou menos um ano antes de ele voltar à escola com uma arma na mão.

Uma pessoa familiarizada com os registros escolares confirmou a autenticidade dos documentos. E entrevistas com professores, administradores escolares e pessoas que conheciam Cruz —além de outros documentos e arquivos— mostram que as autoridades escolares e de saúde mental o conheciam e estavam no processo de conseguir ajuda para Cruz, em lugar de encaminhá-lo à polícia.

Não está claro se os registros estão completos, e uma representante do sistema de ensino do condado de Broward disse que não podia comentar devido às "regras de privacidade dos estudantes".

Parece que Cruz não foi alguém que passou despercebido, mas que foi alvo de esforços grandes para encaminhá-lo no rumo correto. Mas parece, também, que ele ultrapassou o limite do que podia ser feito.

Os professores "se esforçaram muito, muitíssimo" para levar Cruz a um centro escolar que o ajudaria a trabalhar seus problemas, disse a professora da sexta série. Ela mencionou que a mãe de Cruz, agora falecida, entendia seus problemas e queria que ele encontrasse ajuda psicológica. Mas esse processo levou anos, disse a professora, e exigiu montanhas de papelada para documentar as necessidades do estudante.

"Como professores, realmente fazemos tudo que está ao nosso alcance para ajudar esses alunos, tudo mesmo", disse a professora. "É um processo. Um processo longo. É preciso ter muitas informações. Tínhamos muitas informações sobre ele."

As interações passadas de Cruz com escolas do condado de Broward estão sendo alvos de atenção crescente desde a chacina da quarta-feira (14), quando ele foi de Uber ao colégio onde estudara, entrou no recinto e começou a disparar em várias salas de aula em dois pisos, matando 17 pessoas, muitas delas adolescentes. Avisado de que Cruz poderia ser perigoso, um funcionário da escola alertou outros funcionários imediatamente quando o viu chegando, mas foi tarde demais.

O advogado Howard Finkelstein, defensor público do condado de Broward que está representando Cruz, diz que a chacina poderia ter sido evitada, ressaltando todos os sinais de alarme na vida de seu cliente que passaram despercebidas —incluindo na escola, no sistema de saúde mental e com o FBI, que não investigou uma informação recebida no mês passado de que Cruz parecia ser capaz de violência e poderia sair atirando numa escola.

"As informações que colhemos até agora nos parecem um fracasso completo de vários sistemas. Temos um sistema escolar que falhou, um sistema de saúde mental que falhou", disse Finkelstein. "Quando ele foi comprar aquela arma, aquele sistema falhou. O FBI falhou. Isto [o massacre] nunca deveria ter acontecido."

O superintendente do sistema escolar de Broward, Robert Runcie, não comentou o passado disciplinar de Nikolas Cruz, mas disse que está estudando o tratamento dado ao caso dele.

"Sempre há mais que poderia ter sido feito, mas a verdade é que há mais que a liderança federal e o governo poderiam fazer", ele disse em entrevista no sábado (17). "Eles poderiam ter feito investimentos prioritários que nos possibilitassem dar um atendimento adequado a esses alunos que se alienam ou têm problemas de saúde mental. É isso o que poderia ter sido feito melhor."

Runcie disse que, embora as escolas tenham a responsabilidade de garantir a segurança física dos alunos, elas não podem ser as únicas responsáveis pela saúde mental deles.

"Precisamos de mais investimentos em saúde mental, serviços sociais emocionais para nossos jovens", ele comentou. "Esse não é um problema que cabe apenas às escolas cuidar. As escolas não podem resolver todos os problemas."

De acordo com cifras federais, o distrito escolar de Broward teve 580 orientadores durante o ano letivo de 2015-2016, cerca de um para cada 462 alunos. A Associação Americana de Orientadores Escolares recomenda um orientador para cada 250 alunos.

O departamento de educação do condado de Broward não cumpre a recomendação, mas tem uma razão de orientadores para alunos muito melhor que a maioria dos departamentos de educação nos Estados Unidos.

Houve uma época em que as escolas do condado de Broward ultrapassaram todos os outros condados da Flórida em matéria do número de estudantes presos na escola. Mas essa abordagem rígida foi mal recebida, com a preocupação de que estaria encaminhando muitos jovens —especialmente estudantes negros e hispânicos— para o sistema de justiça de menores de idade. Nikolas Cruz é classificado como branco em seus documentos oficiais.

Nos últimos anos as escolas de Broward passaram a liderar uma campanha nacional pela adoção de um tipo diferente de disciplina —algo que não apenas puniria estudantes, mas os ajudaria a trabalhar as causas originais de seu mau comportamento.

Essas políticas visam combater o chamado "canal da escola à prisão", oferecendo aos adolescentes a chance de continuar estudando em lugar de ter seu caminho obstruído, em muitos casos permanentemente, por uma acusação criminal.

A partir de 2013 o condado de Broward deixou de denunciar estudantes à polícia em cerca de 12 tipos de casos, desde abuso de álcool e drogas até bullying, assédio e agressão física. Em vez disso, estudantes que se envolvem nessas infrações têm a oportunidade de fazer um programa alternativo com ênfase para a terapia psicológica, trabalhar a resolução de conflitos e encaminhamento para agências de serviço social comunitário.

Jonathon Fishman, porta-voz da polícia de Broward, disse na semana passada que não tinha registros de Cruz ter sido detido pela polícia em algum momento antes da quarta-feira passada.

Graças a essa política, o número de estudantes detidos na escola caiu muito no condado de Broward. No ano letivo de 2011-12, houve 1.056 prisões feitas em escolas de Broward; no ano de 2015-16 esse número tinha caído 63%, para apenas 392.

A administração Obama elogiou o novo sistema de disciplina adotado pelo condado, descrevendo-o como exemplo a ser seguido no país, e em 2015 convidou Runcie a dar palestras sobre o assunto.

Entrevistas e documentos escolas de Cruz indicam que mais ou menos na época em que a política das escolas de Broward estava mudando, Cruz estava se metendo em confusões.

Um ex-professor de Cruz no ensino fundamental 2 disse que Cruz ficou em sua memória como um de seus alunos problemáticos. Ele se recorda de Cruz "geralmente estar isolado" e de seu "comportamento errático", que muitas vezes perturbava a calma da sala de aula. Às vezes, segundo professor, Cruz se levantava durante a aula e começava a dançar.

"Na época eu não senti que ele poderia ser um perigo físico para nós, mas sabíamos que ele tinha problemas profundos", disse o professor.

Os professores começaram a pressionar os administradores da escola a transferir Cruz para a escola Cross Creek, uma escola pública para estudantes com deficiências emocionais e comportamentais, que oferece atendimento psiquiátrico intensivo. Mas um dos ex-professores de Cruz disse que o processo de encaminhamento do aluno à Cross Creek era muito lento, sendo complicado pela falta de espaço em sala de aula e por procedimentos burocráticos trabalhosos para oficialmente designar um estudante como sendo uma ameaça potencial à sua própria segurança física e à de outros.

"É muito difícil encaminhar um aluno para aquela escola", disse uma professora. "Não sei por que, mas desconfio que seja um problema de verbas. Então Cruz passou três quartos do ano na escola sem receber atendimento."

Nikolas Cruz foi transferido para a escola Cross Creek em fevereiro de 2014. Em janeiro de 2016, depois de quase dois anos na escola Cross Creek, ele foi transferido para o colégio Douglas. Não está claro por que ele saiu da Cross Creek, uma escola pequena e apropriada para suas necessidades, e foi transferido para um colégio grande com mais de 3.000 alunos.

Na escola Douglas, Cruz teve problemas quatro vezes na primeira metade do ano letivo de 2016-2017 —por se envolver em brigas, insultos e uso de linguagem obscena. Em setembro de 2016, depois de uma briga, ele foi encaminhado a assistentes sociais. Uma semana mais tarde o Departamento de Crianças e Famílias abriu um inquérito sobre ele.

Segundo um resumo confidencial do inquérito, ao qual o "Washington Post" teve acesso, o Departamento constatou que, depois de romper com sua namorada, Cruz que recebera o diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e autismo estava deprimido e estava se mutilando. Cruz estava interessado em comprar uma arma. Mesmo assim, o Departamento concluiu que ele apresentava baixo risco para outras pessoas.

As autoridades escolares, que conheciam Cruz bem, parecem ter contestado essa visão. Elas tinham notado uma mudança repentina no comportamento de Cruz após o rompimento com sua namorada. Os orientadores tinham sido informados que ele estava se mutilando e desenhara um símbolo nazista em sua mochila. Eles acharam que seria "prematuro" concluir que Cruz tinha estabilidade suficiente para não ser internado em um hospital.

Em janeiro de 2017, quando Cruz foi disciplinado por uma agressão física que teria cometido, o fato desencadeou uma avaliação de risco, um processo formal pelo qual uma escola determina se um estudante é perigoso e de que modo ele deve ser supervisionado e apoiado.

Três semanas depois de ser encaminhado o pedido de avaliação de risco, Cruz se transferiu para outro colégio. Não está claro se a avaliação foi concluída, qual foram suas conclusões ou se essas conclusões levaram a qualquer intervenção.

A professora de sexta série de Cruz, que tem ex-alunos seus entre os mortos e já deu aula a irmãos de algumas das vítimas, disse que a chacina foi devastadora para ela.

"É demais. É terrível. O que ele fez foi hediondo", ela falou, soluçando. "E só estou falando com você porque as pessoas precisam saber que não deveria ser tão difícil conseguir atendimento especializado para quem precisa."

Tradução de CLARA ALLAIN

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