'Falta muito para medir tortura no Chile'

Mario Carroza, que apura mortes de Allende e Neruda durante ditadura, diz que repressão não foi de todo mensurada

O juiz Mario Carozza, que apura abusos da ditadura Pinochet e diz que apuração sobre morte de Neruda deve terminar logo
O juiz Mario Carozza, que apura abusos da ditadura Pinochet e diz que apuração sobre morte de Neruda deve terminar logo - Fernando Lavoz - 24.jul.2015/CrowdSpark
Sylvia Colombo
Buenos Aires e Santiago

Num país que demorou pelo menos 20 anos após o fim de sua ditadura (1973-1990) para começar a investigar os abusos de direitos humanos ocorridos durante o período, o juiz chileno Mario Carroza acumula as principais causas relacionadas a essa ferida ainda aberta.

Passam ou passaram por suas mãos as decisões sobre os casos mais significativos relacionados ao período: as mortes do Nobel Pablo Neruda (1904-73), do ex-presidente Salvador Allende (1908-73), o episódio Quemados, em que vários oficiais do Exército são acusados de queimar dois adolescentes, em 1986, e a investigação das circunstâncias em que morreu, na prisão, o pai da ex-presidente Michelle Bachelet.

Carroza recebe a Folha em seu escritório, no centro de Santiago. Com a voz serena, conta que a mudança de comando no país --o presidente de centro-direita Sebastián Piñera assumiu há pouco-- não o preocupa.

"A Justiça chilena hoje, no que diz respeito a direitos humanos, é independente. Além disso, quando começamos nosso trabalho, estávamos no primeiro mandato de Piñera [2010-14], depois demos continuidade com Bachelet [2014-18], e não houve ingerência alguma", afirma.

O caso sobre o qual anda debruçado e diz que "teremos de tomar uma decisão logo" é justamente o do poeta Pablo Neruda.

Há testemunhas e algumas evidências que sugerem que ele pode ter sido envenenado, por suas posições políticas de esquerda e uma vez que se opunha ao golpe militar comandado pelo general Augusto Pinochet, em 1973.

"Houve já duas perícias, ambas realizadas por cientistas de outros países. A primeira não achou nada e concluiu que ele morreu do câncer que tinha. A outra analisou outros aspectos e chegou à conclusão de que, efetivamente, pode ter havido a inoculação de alguma bactéria ou substância."

NOVA AVALIAÇÃO

Carrozza diz que haverá uma terceira avaliação, que ajudará a desempatar.

"A análise científica, porém, não é o único recurso. Levamos em conta os relatos das pessoas que o rodeavam e que levantaram suspeitas, o fato de a clínica depois ter tido um caso de envenenamento e outros elementos", afirma o juiz. "Mas é um caso que não pode ficar aberto, pois é emblemático para o Chile."

Há críticas de organismos de direitos humanos com relação à lentidão com a qual os abusos da ditadura estão sendo levados aos tribunais no Chile, em comparação, por exemplo, com a vizinha Argentina.

Carroza é da opinião de que as leis de anistia tiveram seu papel no momento da transição democrática, mas que, hoje, o direito internacional e a jurisprudência que há em casos de lesa-humanidade já permitem que se investigue e condene sem levar em conta anistias e prescrições --que se aplicariam mais a crimes comuns.

"O que detona um desejo de Justiça numa sociedade é um clamor que vem dela mesma, mas também, como no caso do Chile, uma predisposição da Corte Suprema de ir a fundo nas investigações", afirma Carroza. "E isso vem ocorrendo no Chile."

Carroza não crê que haja demora, como alguns familiares de vítimas reclamam, mas, sim, que são os tempos da Justiça, e que hoje, "40 anos depois, temos mais distanciamento para levar adiante esses processos de maneira menos passional, e levando sempre em consideração os direitos humanos em ambos os lados".

FIM DO SILÊNCIO

Ele reconhece que novas informações vêm ajudando, e que muitas delas vêm de militares que participaram de delitos, mas que começaram a quebrar o pacto de silêncio que observaram por tanto tempo.

O caso Quemados, que causou a morte do jovem fotógrafo Rodrigo Negri, é um desses. Um dos acusados resolveu falar, depois de muitos anos.

"E como faz? Também tenho de proteger o acusado. Primeiro, porque é seu direito e ele agiu a mando de alguém; segundo, porque senão não tenho como ir montando o que aconteceu", explica o juiz.

O episódio Quemados ocorreu após a repressão a uma manifestação, em que Negri e uma amiga, Carmen Gloria Quintana, foram detidos por oficiais do Exército, banhados em querosene e queimados. Ela sobreviveu. Apenas nos últimos anos é que o caso vem sendo investigado. Agora, já há acusados aguardando julgamento.

Um dos aspectos que Carroza faz questão de ressaltar é que o cálculo dos números relacionados à ditadura ainda não está completamente esclarecido.

O de desaparecidos, sim, que foram em torno de 3.000, graças ao trabalho de comissões de direitos humanos. "Mas ainda há muito a ser feito para mensurar o tamanho do aparato de tortura. Calculo que foram mais de 30 mil casos. Num primeiro momento, você não quantifica isso, pois os mortos e desaparecidos impactam mais. Mas, se quisermos ter um panorama da verdade do que ocorreu naquele tempo, é algo necessário."

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.