Pragmatismo passa a reger relação Cuba-Brasil

Apesar da ausência de embaixadores, importações brasileiras por Havana crescem, e programa Mais Médicos persiste

Obras no porto de Mariel, que foi construído com financiamento do BNDES, em Havana
Obras no porto de Mariel, que foi construído com financiamento do BNDES, em Havana - Liu Bin - 19.mai.14/Xinhua Press
Isabel Fleck
Havana

Em seu discurso de despedida como chefe de Estado na última quinta (19), Raúl Castro, que mantém a palavra final na política de Cuba, achou espaço para condenar o que chama de golpe parlamentar no Brasil (o impeachment de 2016) e a recente prisão do ex-presidente Lula.
 
O recado confirma expectativas de integrantes do governo brasileiro: a relação política estremecida desde a queda de Dilma Rousseff não deve melhorar com Michel Temer no poder. O sucessor de Castro, Miguel Díaz-Canel, afirma que a política exterior cubana "se manterá inalterável".

Se no campo político a expectativa é manter as relações bilaterais geladas até o próximo governo no Brasil, no comércio não há sinal de tensão. Prevalece o pragmatismo: impelidas por frango, óleo e farelo de soja, saltaram 48% as importações cubanas do Brasil no primeiro trimestre, após aumento de 7,7% em 2017.

Para interlocutores do governo brasileiro, a crise da Venezuela, parceiro essencial de Cuba, fará a ilha se abrir ao capital estrangeiro, e o Brasil pode se beneficiar. 

Os dois países continuam sem embaixadores em Brasília e em Havana. O governo cubano nunca respondeu ao pedido de agrément feito no início de 2017 pelo Brasil para o embaixador Frederico Meyer e retirou sua embaixadora de Brasília no fim de 2016.

A elevação do tom do governo Temer com Caracas também afasta Cuba e Brasil, mas é o corte nas linhas de crédito concedidas à ilha nos anos de governo do PT que deixou o regime mais contrariado.

Além dos US$ 682 milhões (R$ 2,3 bilhões no câmbio atual) financiados pelo BNDES para ampliar e modernizar o porto de Mariel pela Odebrecht nos governos de Lula e Dilma, o Brasil mantinha acordo para emprestar € 56,3 milhões (R$ 235,7 milhões) a Cuba pelo programa Mais Alimentos Internacional. A linha servia para que Havana adquirisse maquinário e implementos agrícolas brasileiros.

No governo Temer e em meio aos escândalos da Lava Jato, porém, a torneira do BNDES fechou. O Brasil não entregou a última das três parcelas do pacote, de € 18,5 milhões (R$ 77,5 milhões). 
Fatia de cubanos no"‚Mais Médicos encolhe 25%

O Mais Médicos também se sobrepõe aos princípios ideológicos do regime. Desde 2013, o Brasil pagou mais de R$ 7,5 bilhões a Havana pelo programa. Hoje, porém, dos 17 mil médicos participantes, só 8.500 são cubanos --chegara a 11,4 mil sob Dilma.

Segundo funcionários do governo brasileiro, havia receio do regime cubano de que, com o impeachment, o acordo fosse cancelado. O Ministério da Saúde diz que pretende reduzir os cubanos para 7.400 até 2019, com substituição por profissionais brasileiros.

Com o turismo, a exportação de serviços médicos é a mais importante fonte de divisas para Cuba hoje. Para cada médico cubano, o governo brasileiro paga R$ 11,8 mil, mas o regime só repassa aos profissionais US$ 1.000 (R$ 3.400). 

Diante dessas condições, 218 médicos cubanos entraram com ações na Justiça brasileira pedindo para receber o valor integral pago pelo governo brasileiro a cada médico do programa. Muitos pedem ainda para ter direito de ser recontratado para o programa, como outros estrangeiros.

Alguns conseguiram ambos, como Arnulfo Batista e Mairelys Rodriguez; após decisão favorável em primeira instância, recebem o valor integral. "Todo médico cubano é considerado, pela lei, um intercambista, mas eles não puderam renovar o contrato como os demais. O edital [para recontratação] feriu o princípio da isonomia constitucional", diz André Corrêa, advogado dos dois médicos cubanos. 

Há ainda 1.500 médicos cubanos que prorrogaram a permanência no país por se casarem com brasileiros, e uma parcela que pediu refúgio.

Um deles é Alioski Ramirez Reyes, 36, que chegou a Valparaíso de Goiás em 2014 e solicitou refúgio em outubro de 2016, meses antes de vencer seu contrato. Hoje, ele trabalha em farmácias e estuda para revalidar o diploma.

Em Cuba, ficaram suas filhas de 8 e 4 anos. "Aqui tenho esperança de liberdade, de conseguir falar o que penso sem me reprimirem, de conseguir independência financeira e bem-estar para minha família", disse. "Aqui há coisas ruins, mas há oportunidade."

As relações entre Brasil e Cuba

US$ 366 mi
foi o valor do comércio entre Brasil e Cuba em 2017, sendo US$ 346,3 milhões em exportações brasileiras à ilha 

7,7%
foi o aumento das exportações brasileiras para Cuba em 2017, em relação ao ano anterior

US$ 54,1 mi
foram as exportações brasileiras para Cuba em janeiro de 2018, o valor mais alto registrado para esse período em dez anos

8.500
médicos cubanos participam do programa Mais Médicos hoje, representando 50% do total de 17 mil

R$ 1,83 bilhão
foi o valor pago pelo governo brasileiro pelo trabalho dos médicos cubanos no programa Mais Médicos

1.500
médicos cubanos prorrogaram sua permanência no país ao se casarem com brasileiros

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