Repórter retraça em livro ligação umbilical da internet com as Forças Armadas

'Assusta que o Google esteja no mundo militar', diz Yasha Levine

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Los Angeles

A história da internet, quem diria, não está corretamente documentada na própria, diz o jornalista investigativo Yasha Levine, que passou três anos escavando fatos esquecidos e, de quebra, colecionou ameaças de morte de libertários defensores do ciberespaço.

No livro “Surveillance Valley - The Secret Military History of the Internet” (vale da vigilância - a história militar secreta da internet, ed. PublicAffairs, US$ 30, sem previsão de lançamento no Brasil), Levine desconstrói diversos mitos em torno da rede.

Criada pelo Exército dos EUA, ela não deveria apenas servir como um canal de comunicação que sobrevivesse um ataque nuclear mas também para combater guerrilhas mundo afora e rebeldes antiguerra em solo americano.

Yasha Levine, 37, jornalista investigativo baseado em Nova York. Nasceu em Leningrado, na antiga União Soviética, e cresceu em San Francisco. Editor fundador do site eXiled e colaborador das revistas Wired, Time e Penthouse - Divulgação

Ou seja, desde os primórdios, a tecnologia era usada para invadir a privacidade alheia, por meio de agentes de espionagem e profissionais civis que coletavam e compartilhavam informações sobre seus inimigos.

Retraçando a evolução da plataforma até a atualidade, Levine descreve como as gigantes da internet viraram prestadoras de serviço para o Exército, agências de inteligência e departamentos de polícia, em contratos milionários pouco divulgados ao público.

O autor tampouco poupa os heróis da dita internet livre, como o projeto Tor, um navegador que promete anonimato online contra os tentáculos malignos do governo americano, mas que continuou a ser financiado pelo próprio governo após virar uma entidade sem fins lucrativos. As revelações renderam ameaças a Levine.

Sobra até para Edward Snowden, que em 2013 vazou documentos que revelavam que a Agência de Segurança Nacional americana tinha acesso direto a qualquer dado dos usuários de gigantes como Apple, Google e Facebook (via o programa de monitoramento PRISM).

 

O Google não vai renovar seu Project Maven com o Pentágono [programa que aprimora interpretação de imagens de vídeo] após protestos de seus funcionários, mas seu livro diz que a empresa trabalha com agências de espionagem do governo desde 2003. O que aconteceu agora?

O que está realmente atrapalhando o Vale do Silício é Donald Trump. Na época do Barack Obama, quando essas empresas assinavam contratos militares, não era uma grande questão porque o governo não era visto como tão horrível. O vale se beneficiou dessa imagem progressista de Obama.

Mesmo que a realidade não tenha sido nada progressista e talvez nem tenha mudado muito agora, a era Trump mudou radicalmente nossa percepção do governo. Então, em vez de o Google ou a Microsoft serem vistos como parceiros de um governo progressista, agora são vistos como parceiros de um governo totalitário.

Quais os riscos quando empresas de tecnologia donas dos nossos dados começam a fazer parcerias com agências de espionagem?

É uma questão de ideologia. Tem gente que não acha isso nada demais, tem gente que acha perturbador.
O Google é uma empresa voltada ao consumidor e que atua no negócio de coletar informações de seus usuários, armazenar, analisar e lucrar com isso. É assustador que uma firma com tanto poder no mundo civil também esteja no mundo militar.

O Google está claramente com medo de que as pessoas vão parar de pensar nele como uma entidade neutra para passar a vê-lo como uma empresa que apenas vai atrás de seus próprios interesses.

As pessoas não pensam que, quando usam seu Gmail, todos seus emails e interações estão sendo repassados a uma firma com relações próximas com agências de espionagem.

Nestes três anos de pesquisa, o que mais o surpreendeu nas histórias sobre a criação da internet?

Foi como as pessoas se esqueceram do que aconteceu nos anos 1960, como a história foi perdida. As preocupações sobre tecnologia, o potencial de abuso e influência política, já eram o centro dos debates e protestos naquela época. As pessoas já sabiam dos problemas.

Hoje, a conversa sobre privacidade na internet está desconectada de seu passado. Mas sempre foi assim, desde o início, quando a internet foi criada pelo governo para combater guerrilhas no exterior e rebeldes em solo americano.

Como a privatização da internet é central para os problemas que temos hoje? 

Nos anos 1990, o sistema saiu das mãos do governo, parou de ser subsidiado e deixou de estar sujeito a qualquer tipo de supervisão pública. Virou propriedade privada.

As pessoas pensam na internet como um ambiente comunitário, neutro e social, mas na verdade estamos como numa praça de alimentação do Walmart.

O Facebook pode lhe expulsar a qualquer momento, não há leis que garantam seu direito de usar o Android [sistema operacional do Google].

A internet é parte integral da vida, há movimentos políticos crescendo nela, e ainda assim não temos nenhum poder ou direito.

Quais seriam as soluções então?

Qualquer solução para a internet teria que ser parte de uma solução política maior, um grande movimento anticorporativo. Porque a internet é importante, é claro, mas não mais que ter um emprego decente ou acesso à saúde.

Precisa haver uma plataforma ou programa que leve em conta a internet como parte de uma sociedade democrática e que pense no que significa ter uma rede que funciona para as pessoas, e não [principalmente] para as empresas.

Seu livro não poupa nenhum herói da internet, nem mesmo Edward Snowden. O que ele poderia ter feito de diferente?

Ele é vítima de sua ideologia. Nada mudou depois que ele vazou os documentos. E a culpa é em parte dele mesmo.

Snowden é um libertário que não acredita em ação política ou nas pessoas se unindo para mudar as leis.

Ele é contra isso.

Em vez de incentivar a mobilização popular, ele promoveu soluções tecnológicas para aumentar a privacidade, como [o programa] Tor ou [o aplicativo de mensagens] Signal. Mas elas não te protegem de verdade, são limitadas.

Tor é uma ferramenta importante para ativistas no mundo. Porém, você conta no livro que ela foi criada e financiada pelo governo. Como fica então o papel dos EUA em manifestações como a Primavera Árabe, quando o programa foi usado por muitos para se expressar livremente, garantindo o anonimato? 

Os EUA treinam muitos ativistas ao redor do mundo, mas isso não significa que os protestos foram fabricados.

Mesmo sem o Tor, a Primavera Árabe teria acontecido. Talvez não sem o Facebook, porque ele foi importante para organização em grande escala. 

Mas o fato de o Tor ter sido usado por ativistas e conseguir furar bloqueios de internet serviu de justificativa para um grande aumento de verbas do governo para iniciativas conhecidas como Internet Freedom, que desenvolviam ferramentas parecidas em nome da democracia, mas que serviam na verdade para abrir mercados para o domínio americano.
 

Acha que a Europa está fazendo um trabalho melhor ao lidar com as gigantes da tecnologia?

Eles estão tentando. Aprovaram novas leis para deixar mais transparente a coleta de dados e a portabilidade, mas o que tenho visto em relatórios é que isso está na verdade fortalecendo ainda mais a posição de mercado de firmas como Google e Facebook.

Porque os competidores menores estão com dificuldade em cumprir essas novas regulamentações e, portanto, estão perdendo clientes. 

As firmas continuam fazendo a mesma coisa, que é vigiar as pessoas para gerar lucro. A Europa não está tentando limitar isso, mas sim normalizar e regulamentar. Para mim, o problema está no modelo de negócio.

O mudou na sua rotina online após o livro?

Tenho um iPhone e parei de usar Gmail. Agora estou conectado a um serviço pago de email. 

Mas utilizo outros serviços do Google, é claro, não dá para fugir. É muito difícil fazer qualquer coisa individualmente para proteger sua privacidade contra essas corporações. A não ser que você se desconecte do mundo.

É uma situação à qual fomos forçados. O Facebook é uma ferramenta muito útil, mas é estranho que tenha que ser baseado no fato de que estamos sendo vigiados e perfilados o tempo todo.

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