Descrição de chapéu The Washington Post

Convencidos pela polícia de serem assassinos, condenados ganharão R$ 108 mi de indenização

Seis suspeitos não se lembravam do crime; juntos, cumpriram mais de 70 anos de prisão

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Meagan Flynn
Washington | The Washington Post

Seis pessoas marginalizadas em Beatrice, Nebraska, passaram anos convencidos de que haviam violentado e sufocado uma idosa chamada Helen Wilson numa noite em fevereiro de 1985, apesar de não se lembrarem de nada.

Foi o que lhes foi dito pelos investigadores e os psicólogos da polícia do condado de Gage.

Num primeiro momento, era confuso: por que eles não conseguiam se lembrar de nenhum detalhe do crime?

retratos das seis pessoas
As seis pessoas condenadas e mais tarde inocentadas de matar Helen Wilson em 1985: (de cima à esquerda) Joseph White, Tom Winslow, Jane JoAnn, Deb Shelden, James Dean e Kathy Gonzalez - Journal Star

Nenhum dos seis suspeitos sequer se recordou de ter estado no apartamento da vítima naquela noite. Mas tudo bem, a polícia lhes disse: eles haviam simplesmente reprimido as memórias traumatizantes.

O psicólogo da polícia, Wayne Price, disse a eles que as memórias do assassinato provavelmente ressurgiriam em seus sonhos ou quando estivessem pensando profundamente, mas que isso talvez levasse algum tempo.

Para alguns deles não levou tanto tempo assim. “Eu bloqueio as coisas ruins. Sempre fiz isso”, disse Ada JoAnn Taylor à polícia em um de seus primeiros interrogatórios, em 1989, repetindo palavras do psicólogo.

Quando a investigação terminou, três dos seis suspeitos —Taylor, Debra Shelden e James Dean—diziam acreditar plenamente que eram culpados do crime.

Mas a história foi diferente para pelo menos um deles: Joseph White.

Condenado com base em nada mais que as memórias falsas e os sonhos de seus amigos, ele passaria os 20 anos seguintes lutando para provar sua inocência, numa campanha encerrada finalmente nesta semana.

Na segunda-feira (4) a Suprema Corte confirmou a decisão de conceder US$ 28,1 milhões (cerca de R$ 108 milhões) em indenizações aos injustamente condenados, hoje conhecidos como os Beatrice Six (Seis de Beatrice).

A decisão é fruto de uma ação judicial cível que White moveu em 2009, o mesmo ano em que os seis foram perdoados e declarados inocentes depois de serem exonerados por provas de DNA.

Juntos, eles haviam cumprido mais de 70 anos de prisão.

O valor de US$ 28,1 milhões representa mais de três vezes o orçamento anual do condado de Gage, que tem 22.311 habitantes.

Para pagar a indenização, o condado já aprovou o maior aumento do imposto territorial e predial permitido pelas leis estaduais, assustando contribuintes e agricultores com terrenos extensos, conforme reportagem do “Omaha World-Herald”.

O condado de Gage recorreu da sentença em todas as instâncias, argumentando que seus atos devem ser julgados com base no que era considerado correto na época, não no que hoje se sabe estar errado.

Os tribunais de todas as instâncias rejeitaram os argumentos, culminando com a decisão da Suprema Corte na segunda.

Mas White não viveu para ver a resolução de seu caso.

Ele morreu num acidente numa refinaria de carvão no Alabama em 2011, dois anos depois de mover a ação cível.

Sua mãe, Lois White, disse ao “Lincoln Journal Star” na segunda-feira (4): “Meu objetivo principal em tudo isso foi limpar o nome de meu filho e lançar luz sobre as pessoas que o fizeram passar por tudo aquilo, para todo o mundo ver”.

As condenações errôneas foram frutos de interrogatórios agressivos e erros científicos.

Mais e mais suspeitos foram sendo envolvidos, à medida que as falsas memórias dos interrogados foram ficando mais fantasiosas.

A maioria dos suspeitos já sofrera traumas de algum tipo, de acordo com os documentos do processo.

Alguns tinham sido vítimas de violência sexual ou física na infância. Alguns eram doentes mentais ou apresentavam comprometimento intelectual.

Assim, para a maioria das pessoas, a ideia de que pudessem ter reprimido algo tão terrível não parecia descabida.

A chamada “repressão de memórias” proposta por Price, o psicólogo policial, refletiu um movimento popular entre psicólogos na época.

A mesma teoria levaria a muitas condenações errôneas em todo o país nessa época, inclusive durante um período breve conhecido como “pânico satânico”, em que psicólogos levaram crianças a acreditar que eram vítimas de abuso sexual.

Mas o caso dos Seis de Beatrice se destacou porque alguns dos suspeitos inocentes passaram anos pensando que realmente eram culpados, como noticiou Rachel Aviv, da revista New Yorker, em 2017.

Muito tempo depois de os integrantes do grupo terem sido encarcerados, alguns ainda choravam ao falar com familiares e amigos, expressando remorso profundo e sem nunca se libertar de um angustiante sentimento de culpa.

Eli Chesen, psicólogo do Nebraska que avaliou o grupo depois de sua saída da prisão, disse à New Yorker que os seis estavam sofrendo da síndrome de Estocolmo, uma condição em que reféns formam um vínculo com seus captores —nesse caso, com a polícia.

“Suas novas crenças passaram por cima de suas experiências passadas, como um papel que recobre uma pedra”, disse Chesen.

Os advogados do Condado e de Price não quiseram se manifestar.

Investigações

Nos primeiros quatro anos após o assassinato de Helen Wilson, a polícia não encontrou um suspeito.

Em 1989, as autoridades procuravam pessoas que fossem sexualmente anticonvencionais e que colecionassem obras de pornografia.

O FBI acreditava que era esse o perfil de quem cometera o crime, segundo a “New Yorker”.

White e Taylor pareciam corresponder a essa descrição.

Cada um deles vivia às margens da sociedade.

White, que tinha sido modelo nu e diretor de filmes pornográficos, conheceu Taylor na Califórnia no início dos anos 1980.

Eles retornaram a Beatrice, onde Taylor vivera previamente, e pouco antes do assassinato de Helen Wilson haviam voltado a fazer filmes pornô.

Seguindo o rastro de rumores, investigadores buscaram interrogar Taylor –e não demorou para ela ser convencida de que também era culpada pela morte de Helen Wilson.

Segundo transcrições contidas em registros judiciais, Taylor disse que os policiais que a levaram à cadeia “lhe disseram” que ela tinha estado no apartamento da vítima. Os policiais “trabalharam para me fazer recuperar pedacinhos de memórias”, ela disse.

Taylor não conseguia se recordar de nenhum detalhe preciso sobre o apartamento de Helen Wilson nem das roupas que a vítima vestia. Nem conseguiu se lembrar porque teria entrado no apartamento.

Mas os policiais lhe disseram para não se preocupar.

“Deixe-me tentar refrescar sua memória”, disseram, segundo a transcrição.

Taylor acabou confessando que sufocou Wilson com um travesseiro enquanto White a violentava.

Mas a investigação não podia acabar nisso porque havia um problema: nem Taylor nem White tinham sangue tipo B, encontrado na cena do crime. Por isso a polícia pensou que deveria haver mais envolvidos.

As falsas lembranças de Taylor ajudariam a levar a polícia até outros suspeitos, e os sonhos e falsas memórias desses outros foram levando a investigação a ficar cada vez mais desvairada, em um efeito de bola de neve.

Primeiro Taylor mencionou à polícia, como que por acaso, que “outro rapaz” estivera com ela e White durante o crime.

Ela apontou um amigo seu do colégio, Thomas Winslow, de um grupo de fotos de suspeitos que a polícia lhe apresentou. Winslow tampouco tinha sangue tipo B, mas foi detido mesmo assim.

A quarta suspeita, Debra Shelden, foi visada porque costumava sair com as pessoas do grupo.

Depois de ser interrogada pela polícia e por Price, também ela aderiu à ideia de que teria reprimido a memória do crime, o que a levou a também fazer uma confissão falsa.

Ela ajudou a polícia a incluir um quinto suspeito na lista depois de sonhar que outro homem, James Dean, estivera na casa de Helen Wilson naquela noite.

Depois de ser interrogado por Price, também Dean passou a acreditar que havia se esquecido da agressão violenta.

Mas a suspeita final, Kathy Gonzalez, resistiu. Ela tornou-se suspeita porque tanto Shelden quanto Dean disseram que tinham sonhado com ela na cena do crime, segundo a ação judicial.

Inocentes

Gonzalez teria jurado que na noite de 5 de fevereiro de 1985 ela estava lavando suas roupas. Mas, em entrevista com Price, o psicólogo lhe afirmou que ela provavelmente havia testemunhado o assassinato de Wilson –ela apenas teria se esquecido.

“Você já teve problemas de memória antes?”, Price perguntou, segundo uma transcrição policial da entrevista.

Confusa, Gonzalez lhe disse que não, não tinha problemas de memória, tirando sua dificuldade em decorar matérias na escola.

“E se fosse algo tremendamente assustador, tipo alguma coisa que tivesse um impacto emocional forte?”, perguntou o psicólogo.

Gonzalez disse que não. Ela se lembrava perfeitamente de coisas traumáticas que lhe haviam acontecido no passado. Como poderia esquecer um assassinato?

“Não entendo”, ela disse ao psicólogo. “Afinal, esse não é um assunto do qual eu não falaria nada. Não estou querendo dizer que sou perfeita. Já cometi meus pecadinhos. Mas estamos falando em matar uma idosa.”

Ela foi detida e indiciada mesmo assim. Gonzalez tinha sangue tipo B. Assim a investigação finalmente foi encerrada.

Gonzalez não contestou a acusação. Winslow, o colega de escola de Taylor, fez o mesmo. Taylor, Dean e Shelden se confessaram culpados.

Quanto a White, ele havia se declarado inocente desde o início.

Na noite em que foi detido, sua primeira pergunta foi “por que sou suspeito de um homicídio?”. Ele disse que não conhecia nenhuma Helen Wilson e não tinha conhecimento de nenhum homicídio.

“Você está tendo dificuldade em se lembrar”, sugeriu o detetive que o estava interrogando, segundo a transcrição. “Talvez seja porque você não queira se lembrar, não? Que tal, Joe –será que não é isso?”

Não, White reiterou várias vezes. “Nunca estive naquele apartamento.”

Os detetives ameaçaram fazer exames em seu sangue, cabelos e sêmen para provar sua culpa. White prometeu que os exames provariam sua inocência.

Mas ele teria que esperar quase duas décadas.

Um tribunal rejeitou o pedido do próprio White para a realização de exames de DNA, e foi apenas em 2007 que a Suprema Corte do Nebraska autorizou os procedimentos.

Esse exame acabou levando White e seus cinco corréus a serem inocentados.

Naquele momento, o suspeito real, identificado por exames de DNA, já tinha morrido.

O sêmen e sangue encontrados no local do crime correspondiam aos de Bruce Allen Smith, antigo morador da cidade de Beatrice, morto em 1992.

A polícia agora acredita que Smith agiu sozinho.​

Tradução de Clara Allain 

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