Nicaraguenses falam sobre 'noite de terror' um ano após início de atos contra ditadura

Ataque efetuado por paramilitares apoiadores do regime deixou 12 feridos e dois mortos

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São Paulo

Deitados no chão de uma igreja, ao som de tiros, no escuro e chorando, mais de cem jovens nicaraguenses se despediram uns dos outros, achando que em alguns minutos estariam mortos. No ataque, efetuado por paramilitares apoiadores da ditadura no país, dois deles de fato foram assassinados, 12 ficaram feridos e outros tantos foram presos ou tiveram que se exilar após algum tempo.

A cena foi um dos momentos mais dramáticos do conturbado último ano na Nicarágua, marcado por protestos massivos contra o ditador Daniel Ortega e sua mulher e vice, Rosario Murillo.

O regime vem sido acusado reiteradamente de violação de direitos humanos por organismos internacionais, e o ataque aos jovens na igreja, ocorrido em 13 de julho, foi um dos símbolos disso.

Eram estudantes da maior universidade do país, a Unan (Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua), que ocupavam a sede da instituição desde maio como forma de protesto. Cercados e alvejados durante 16 horas, primeiro na universidade e depois na igreja, eles só foram liberados após a intervenção de membros da cúpula eclesiástica.

A Folha conversou com dois nicaraguenses que estiveram lá no dia do ataque e hoje vivem fora do país. Assim como muitos exilados, eles não divulgam sua identidade nem o lugar em que estão no momento, por motivos de segurança.

Em Manágua, manifestante segura bandeira durante marcha que marcou o aniversário de um ano dos protestos contra o ditador Daniel Ortega - REUTERS

Um deles, que usa o codinome Oso Guarimbero, é um estudante de medicina de 21 anos que agora está em outro país latino-americano. A outra, que se auto-intitula nas redes sociais Médica Vandálica, já exerce a profissão, tem 27 anos e fugiu para a Europa. Ambos trabalharam no atendimento a vítimas de ferimentos durante os protestos, dentro e fora da universidade.

Relatórios da ONU (Organização das Nações Unidas) e da comissão da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ligada à OEA) documentam que o regime deu ordens para que hospitais negassem atendimento a feridos nos dias de protesto.

"Médicos, enfermeiros e estudantes tiveram que ir para as ruas ajudar", diz Oso, que decidiu se unir aos voluntários após ter um familiar idoso agredido no protesto contra a reforma da previdência. "Não dá para ver esse tipo de injustiça sem fazer nada."

Ela se lembra bem dos chamados por "médico, médico, médico", que podiam vir a qualquer hora para atender os feridos durante a ocupação da Unan.

Também lembra e conta em detalhes o último dia no local. Como haveria uma manifestação de apoiadores da ditadura, eles estavam mais alertas. Porém, os ataques costumavam ocorrer à noite, e não no meio-dia, como dessa vez.

"Vimos com binóculos as caminhonetes chegando por todos os lados com paramilitares. Eram ao menos 50 e estavam armados como para uma guerra", diz. "Ali entendemos claramente. Desta vez a intenção era nos matar."

Refugiados na igreja próxima à universidade, eles achavam que lá não seriam atingidos, mas o cerco continuou. Entre os estudantes havia feridos com hemorragias graves e balas no corpo, conta Oso.

 

Um sacerdote que saiu com uma bandeira do Vaticano negociou a saída de alguns deles junto com um jornalista americano do The Washington Post. Depois disso, o ataque continuou. Moradores de Manágua fizeram uma caravana para tentar ajudar os jovens, mas a polícia não os deixou entrar.

"Foi uma noite de terror", relembra a Médica Vandálica. "Ficamos sem luz porque dispararam em um poste elétrico. Os celulares se descarregaram, não tínhamos comunicação. Escutávamos os tiros tão perto. Estávamos todos deitados com as mãos na cabeça, esperando que entrassem a qualquer momento, resignados a morrer."

Os dois garotos mortos estavam em uma barricada do lado de fora, que protegia a entrada do local.

A nicaraguense, que se uniu aos atos contra Ortega já no dia seguinte à primeira manifestação, diz que a ida da população às ruas foi "uma explosão de algo que estava engasgado há muito tempo".

"Quando vimos velhinhos sendo agredidos, não aguentamos mais. Não imaginávamos que chegaria aonde chegou."

Depois do ataque na igreja, ela ficou três meses em casas de segurança, achando que "em breve a situação iria melhorar e voltaríamos para nossas vidas normais". Como isso não aconteceu, acabou saindo clandestinamente da Nicarágua e se exilando na Europa.

Diz que continua denunciando à distância o regime nicaraguense, mas sente "muita impotência". "Estou longe de tudo o que conheço e amo. Ainda espero voltar para um país com democracia e justiça."

Oso, o estudante, diz que tem sequelas psicológicas que "jamais vão se apagar". "Sonho quase todos os dias com barulho de bala. Ainda escuto esse barulho na minha mente."

Ele não se atreve a voltar à Nicarágua por agora. "Ortega diz que os exilados podem retornar, mas o país não é seguro para nenhum jovem que seja crítico ao sistema", afirma. "Quero voltar quando não houver mais ditadura, quando possamos punir os culpados e fazer justiça para as vítimas. Teremos que construir o país do zero."

Polícia é ativada enquanto manifestantes protestam contra o governo do ditador Daniel Ortega, no aniversário de um ano do início das manifestações - AFP
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